O controle dos atos do Poder Executivo em matéria tributária
No final de 2020, a discussão acerca do controle judicial da deslegalização e da discricionariedade do Poder Executivo em matéria tributária voltou a ganhar os holofotes em duas questões submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF). A primeira se refere às decisões na ADI nº 5.277 e no RE nº 1.043.313, em que foram declaradas constitucionais previsões legislativas que outorgam ao Executivo a estipulação de alíquotas de PIS/COFINS sobre receitas financeiras e oriundas de vendas de álcool.
A segunda é o ajuizamento da ADPF nº 772, que possui como objeto a declaração de inconstitucionalidade da Resolução do Comitê Executivo de Gestão da Câmara do Comércio Exterior (Gecex) nº 126, de 08/12/2020, que reduziu de 20% para zero a alíquota do imposto de importação de revólveres e pistolas.
Tendo como base esses três casos, abordaremos uma questão pouco explorada em matéria tributária: o dever de fundamentação dos atos do Poder Executivo, sobretudo daqueles que alteram valores a serem pagos pelos contribuintes, intervindo consequentemente na economia e/ou (des)onerando bens e serviços supérfluos ou essenciais. Como restará claro, esse dever de fundamentação não será considerado cumprido com uma manifestação genérica, mas com uma análise de impactos econômicos e sociais, que deve ser pública e anterior ao ato.
Entendemos que esse debate se tornou ainda mais urgente com a tendência de chancela, por parte do STF, de delegações legais em tributos não expressamente previstos na Constituição como exceções à reserva legal, como é o caso do PIS/COFINS. Isso porque, ao alargar as hipóteses de atuação do Executivo, afasta-se a garantia de que as normas serão publicamente debatidas e escrutinadas durante o processo legislativo ao qual são submetidas no Parlamento. Ao fim, pretendemos ter subsídios para comprovar que já passou da hora de contestarmos o dogma de que a discricionariedade administrativa em matéria tributária é irrestrita e absoluta, seja em âmbito federal, estadual ou municipal.
Iniciaremos nossa breve análise pela ADPF nº 772, ajuizada em 10/12/2020. Na ação, o partido requerente alega, em resumo, que a Resolução Gecex nº 126/2020 viola os preceitos fundamentais de proteção à vida, de garantia da segurança pública e da dignidade da pessoa humana e apresenta dados que demonstram que o impacto da redução da alíquota do imposto de importação nos preços das armas pode chegar a 40%, o que acarretaria, consequentemente, a facilitação do consumo e uma maior circulação de armas no país, com prejuízos à indústria nacional e diminuição de arrecadação de valores que poderiam ser utilizados pelo Governo Federal no combate à pandemia. Por fim, afirma que o ato questionado fere a razoabilidade, a proporcionalidade e o mandamento constitucional da seletividade tributária, que se aplicaria a todos os tributos, e requer, cautelarmente, a sua suspensão.
O relator, ministro Edson Fachin, apesar de reconhecer a existência de precedentes da Corte que afirmam ser ampla a discricionaridade do Poder Executivo no que tange à concessão de benefícios fiscais e afastam a interferência do Poder Judiciário no tema, deferiu a liminar em 14/12/2020. Entendeu que a Resolução, ao veicular norma que desonera e estimula a aquisição de armamentos, colide com regras e princípios constitucionais, como o direito à vida e à segurança e a proteção do mercado interno, o que permitiria o controle judicial, por se tratar de situação distinta daquelas já analisadas pelo STF. O ponto da decisão monocrática, porém, que merece destaque para os fins do presente artigo é o de que o relator, ao analisar a proporcionalidade da medida, consignou que o ato administrativo carecia de fundamentação. Confira-se:
“Ante o peso prima facie dos princípios do direito à vida e à segurança, e da significativa intensidade de interferência sobre eles exercida pela referida redução de alíquota, naquilo em que estimula a aquisição de armas de fogo e reduz a capacidade estatal de controle, seria necessário que os princípios concorrentes (fossem eles o direito de autodefesa, ou as prerrogativas de regulação estatal da ordem econômica) estivessem acompanhados de circunstâncias excepcionais que os justificassem. Em termos técnicos, estes direitos deveriam ser complementados por extraordinariamente altas premissas fáticas e normativas (…).
Ademais, estas premissas deveriam estar plasmadas em planos e estudos que garantissem racionalmente, a partir das melhores teorias e práticas científicas a nós disponíveis, que os efeitos da norma não violariam o dever de controle das armas de fogo pelo Estado brasileiro. (…).” (Destaques acrescidos).
Nessa linha, a ausência de justificativa do ato do Executivo, exposta de forma clara no referido trecho, a nosso ver, já seria motivo suficiente para o deferimento da medida cautelar pelo Relator, por descumprimento do dever de fundamentação por parte do Executivo. Explicamos.
O ordenamento jurídico brasileiro possui um arcabouço normativo que impõe à Administração Pública um dever de fundamentação dos seus próprios atos. Em nível constitucional, o art. 37 prevê que a Administração obedecerá aos princípios da legalidade e da publicidade, sendo que o primeiro restringe a sua atuação às hipóteses expressamente previstas em lei e o segundo impõe a publicização dos seus atos, o que inclui também seus fundamentos. Além disso, o art. 5º, LIV, da Constituição, impõe que o devido processo legal é requisito para que indivíduos sejam privados de seus bens, sendo necessária, portanto, fundamentação jurisdicional para que isso ocorra (e por que não fundamentação administrativa?).
No plano infraconstitucional, tem-se a inequívoca previsão do art. 2º, caput, e inciso VII, da Lei nº 9.784/1999, que determina que a Administração Pública Federal exponha os pressupostos de fato e de direito que embasaram sua decisão; o art. 20, caput, e parágrafo único, da LINDB, incluído pela Lei nº 13.655/2018, que afirma que “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”; e, ainda, o art. 5º da Lei nº 13.874/2019, a Lei de Liberdade Econômica, que, na esteira das boas práticas incentivadas por organismos internacionais – como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, dispõe que “As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal (…) serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório [AIR], que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.” Estando a Administração, portanto, obrigada a seguir a lei, sua discricionariedade esbarra nos limites acima expostos.
Em relação à fundamentação quanto aos impactos orçamentários de propostas normativas, verificamos que o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal impõe a estimativa do impacto orçamentário-financeiro e medidas compensatórias como requisitos para outorga de benefícios fiscais, excluindo dessa obrigação apenas os impostos extrafiscais; e o art. 113, do ADCT, incluído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, que determina que “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”, não fazendo, entretanto, referência expressa à sua aplicação às normas administrativas.
Apesar de ainda estar em estágio de maturação no Brasil, os dispositivos citados demonstram uma tendência de se alçar a fundamentação como pressuposto de validade da norma, seja ela oriunda do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, o que encontra paralelo em outros países, conforme afirma Victor Marcel Pinheiro em artigo sobre o tema:
“Essa tendência não é exclusivamente brasileira. No direito comparado, fala-se em ‘devido processo normativo’ (due process of lawmaking), em que a produção de normas jurídicas – seja pela via legislativa ou administrativa – deve observar padrões mínimos de racionalidade, participação social e transparência. Aponta-se a tendência de maior controle judicial de aspectos procedimentais do processo normativo legislativo e administrativo, em que o foco é o modo de produção normativa (e não somente seu conteúdo)”.
Assim, reiteramos que, apesar de não haver um comando constitucional ou legal expresso no sentido da obrigatoriedade de justificação dos atos administrativos em matéria tributária, entendemos que o princípio democrático protegido pela Constituição de 1988 – em que se incluem a publicidade, a possibilidade de participação popular e o controle jurisdicional desses atos – e o arcabouço legal apresentado confirmam a existência de um dever de fundamentação do Poder Executivo na elaboração de normas. Assim, devem ficar claras e acessíveis informações que indiquem porque essas medidas são convenientes e oportunas, tais como: qual é a finalidade da majoração ou diminuição de alíquotas; quais setores serão atingidos; qual será o impacto social e econômico sobre o consumo do bem ou serviço (des)onerado – justificativas ainda mais relevantes no caso de atividades altamente reguladas, por exemplo, a compra e venda de armas. Esse dever, que quando falamos em elaboração de normas pelo Poder Legislativo nos parece ser inerente ao processo legislativo, precisa ser ainda mais rígido quando é o Executivo que produz atos normativos, uma vez que ele atua em sua função atípica e à margem de uma disciplina de elaboração de leis que garante um maior controle jurisdicional e social dos atos emanados do Parlamento.
Retomando à análise da ADPF nº 772, destaca-se que a Advocacia-Geral da União interpôs agravo regimental em face da decisão que deferiu a cautelar, alegando, dentre outros fatos, que o ato impugnado visava “propiciar o acesso de agentes de segurança pública a instrumentos de proteção com preços razoáveis (…)”. Afirmou, ainda, que “Não raro, esses servidores são acometidos por uma situação de vulnerabilidade desproporcional, pois, além de frequentemente remunerados abaixo do patamar ideal, residem em locais de segurança crítica, expondo sua vida e a de seus familiares a riscos extremos”.
No entanto, a simples leitura da Resolução Gecex já demonstra que a desoneração não se restringe a um grupo específico de contribuintes. Ademais, os pareceres e notas do Executivo não logram êxito em confirmar a finalidade da Resolução e, muito menos, justificá-la, uma vez que, em sua maioria, datam de momento posterior a sua edição e à própria propositura da ADPF. Então, como saber ao certo a quem a norma se destina, bem como seu impacto social, econômico e concorrencial? Sem justificação, é impossível ter ciência da finalidade da norma e, sem finalidade, a extrafiscalidade e a seletividade não podem ser verificadas, o que faz com que o ato se configure como arbitrário e não encontre amparo constitucional.
Por sua vez, entendemos que o tema referente ao dever de fundamentação dos atos administrativos merece atenção redobrada, dado que o STF tem declarado constitucionais previsões legais que delegam ao Poder Executivo Federal a alteração de alíquotas de tributos que não configuram como exceções constitucionais à legalidade estrita, como na ADI nº 5.277 e no RE nº 1.043.313, julgados em dezembro de 2020.
Na ocasião, a Corte declarou a constitucionalidade de dispositivos de leis que autorizaram o Poder Executivo a manipular as alíquotas de PIS/COFINS de receitas financeiras e oriundas da venda de álcool, criando, porém, dois requisitos para a validade dessa delegação: “(…) é imprescindível que o valor máximo dessas exações e as condições a serem observadas sejam prescritos em lei em sentido estrito, bem como exista em tais tributos função extrafiscal a ser desenvolvida pelo regulamento autorizado”.
Assim, segundo a Corte, não basta que a lei em sentido estrito imponha as alíquotas mínima e máxima, deve haver nos tributos uma função extrafiscal a ser implementada pelo Executivo. No entanto, PIS e COFINS não são tributos tipicamente extrafiscais — podendo, obviamente, ter essa função de forma extraordinária —, mas tributos fiscais afetados ao custeio da seguridade social. Nesses casos, a extrafiscalidade não poderá ser presumida, como fez o STF, sendo necessário um ônus ainda maior de justificação tanto do legislador, que efetuou a delegação e deveria ter trazido critérios de exercício do poder delegado, quanto do Executivo, que manejará as alíquotas, com interferência direta no orçamento e no mercado.
Pelos standards estabelecidos nas decisões, conclui-se que a extrafiscalidade inequívoca é pressuposto de validade da delegação, que nunca poderá ser utilizada, portanto, para fins exclusivamente arrecadatórios. Por se tratar de chancela de deslegalização em hipóteses não previstas na Constituição, entendemos que a atuação do Executivo deve ser ainda mais suscetível a controle.
Por fim, acreditamos que as decisões do STF abordadas contribuem para que joguemos luzes sobre a necessidade de rediscutirmos a discricionariedade do Poder Executivo em matéria tributária, a qual não pode ser absoluta, sobretudo quando ela é exercida para alterar aspectos quantitativos de fatos geradores, sendo premente a exigência do cumprimento do dever de fundamentação dos atos administrativos, nos termos previstos na legislação citada. Esperamos, ainda, que a jurisprudência da Corte acerca da impossibilidade de controle, pelo Judiciário, da discricionariedade evolua a fim de exigir que a fundamentação – tanto legislativa, quanto administrativa – seja pressuposto de validade das normas tributárias. Tudo isso sob pena de retrocedermos quanto à proteção do Estado Democrático e não conseguirmos avançar em relação à tendência internacional de aumento de transparência governamental e de aprimoramento de práticas regulatórias.