Não incidência do ISS sobre a cessão de infraestrutura e julgamento da ADI nº 3142
O Supremo Tribunal Federal acaba de decidir a ADI nº 3142 e reafirmar a sua sólida jurisprudência de que não incide ISS sobre cessão de infraestrutura, entendida como “Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza”.
Neste julgado, cujo acordão foi publicado em 06/10/2020 e ainda poderá ser objeto de embargos de declaração, ficou decidido, com eficácia erga omnes, ser relevante a distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer e que a interpretação econômica, seja lá o que isso signifique, não deve justificar a cobrança do ISS sobre contratos que não tenham como objeto a prestação de serviço.
Não cobrar imposto sobre serviços sobre algo que não é serviço parece uma tautologia, mas não é. Mesmo tendo jurisprudência reiterada sobre o tema e uma súmula vinculante prescrevendo este entendimento, estava se tornando recorrente a ideia de que o Supremo Tribunal Federal havia abandonado o seu histórico de decisões para seguir um outro caminho, mais afinado com a chamada “interpretação econômica” do direito tributário.
O que fica claro agora, e lança luz para compreender alguns julgados anteriores, é que a complexidade da sociedade contemporânea faz surgir relações nas quais o “dar” e o “fazer” estão entrelaçados. Sobre estas relações complexas, a depender de certas e determinadas características, pode-se discutir se há ou não serviço tributável. Naqueles casos em que o serviço não é o objeto da contratação, como nos casos de cessão de infraestrutura, não há que se cogitar na incidência do ISS.
É importante reafirmar que a posição tradicional do Supremo Tribunal Federal, firmada a partir do julgamento do Recurso Extraordinário n. 116.121 (Rel. Min. Octávio Gallotti, DJ 11.10.2000), reconhece a inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a “locação de bens móveis”. Naquele caso, a situação fática submetida à análise do STF envolvia a locação de guindastes, sem que existissem outras obrigações por parte do locador. Ou seja, tratava-se de um contrato de locação puro e simples, em que a atividade do contribuinte consistia, exclusivamente, numa obrigação de dar, sem que existisse a obrigação de fazer que caracterizaria a atividade como serviço.
O julgamento deste Recurso Extraordinário levou ao veto do item 3.01 da Lei Complementar nº 116/03 – diploma normativo responsável por uniformizar a cobrança do ISS em nível nacional –, em que estava prevista como tributável a atividade de “locação de bens móveis”.
Após uma década de aplicação contínua desse entendimento, o STF, em 17/02/2010, editou a Súmula Vinculante n. 31, com o seguinte enunciado: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Em debates realizados durante a aprovação da referida Súmula, os Ministros reiteraram o entendimento de que, havendo conjugação de locação de bens móveis com serviços, apenas estes seriam tributados, de acordo com o seu enquadramento específico.
No mesmo sentido, em julgamento realizado no RE 626.706, o STF fixou, com repercussão geral, a seguinte tese: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis, dissociada da prestação de serviço” (Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 24/9/2010).
Contudo, apesar da plena vigência da Súmula Vinculante n. 31, reiterada pelo STF em várias oportunidades a partir da sua edição, permanecem discussões acerca da possibilidade de o ISS incidir sobre a mera cessão de bens, dissociada de qualquer “fazer”. É o caso do item 3.04 da lista anexa à LC 116/03, que prevê como tributável pelo ISS a atividade de “locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza”, cuja inconstitucionalidade é discutida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3142.
Apesar da sua evidente semelhança com o item 3.01, o item 3.04 segue sendo objeto de controvérsia entre contribuintes e fiscos municipais. Para fundamentar suas alegações, os Municípios sustentam que a jurisprudência recente do STF teria adotado uma definição de serviço mais abrangente, com base na realidade econômica da atividade e não em sua conceituação jurídica.
Trata-se, pois, do argumento mencionado ao início desse texto, segundo o qual teria havido superação da jurisprudência tradicional do STF sobre o tema. Fundamentando essa posição, são destacados os seguintes julgamentos: (i) RE n. 603.136, em que se concluiu pela possibilidade de incidência do ISS sobre contratos de franquia; (ii) RE n. 651.703, em que foi definida a cobrança de ISS sobre operadoras de plano de saúde; e (iii) REs n. 547.245 e 592.205, em que o STF concluiu pela incidência do ISS sobre o leasing financeiro e o leaseback.
Todos esses casos, no entanto, têm um ponto em comum: a identificação, pelo STF, de que as atividades dos contribuintes englobariam diversas prestações, sendo que a parte mais relevante delas corresponderia a uma obrigação de fazer, tributável pelo ISS. Portanto, uma vez que o cerne da atividade seria uma obrigação de fazer – configurando-se serviço misto ou complexo prestado pelo contribuinte –, concluiu-se pela incidência do imposto, nos exatos termos da jurisprudência tradicional sobre o assunto.
Não houve, nesse sentido, qualquer modificação na jurisprudência tradicional, referente às cessões de bem móvel. Tampouco se alterou a visão, já consolidada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, de que os serviços devem corresponder a obrigações de fazer. Tanto que esses julgamentos não implicaram a revogação da Súmula Vinculante n. 31 ou, ainda, a modificação da tese fixada, com repercussão geral, no RE n. 626.706, ambos precedentes de aplicação vinculante por todos os juízes e Tribunais (art. 103-A da Constituição da República e art. 927 do Código de Processo Civil). Ou seja, não há que se falar em modificação da jurisprudência do STF, mas sim em sua adequada aplicação a casos distintos.
A prova recente e incontestável da manutenção da distinção entre as obrigações de dar e de fazer é, justamente, o julgamento da ADI n. 3142. Analisando as atividades previstas no item 3.04 da Lista Anexa à LC n. 116/03, o STF entendeu que essas correspondem, tão somente: (i) à colocação de um bem à disposição de outrem ou (ii) à abstenção à prática de algum ato – como é o caso do direito de passagem e da permissão de uso. Com base nisso, o STF concluiu ser inconstitucional a cobrança do ISS sobre a cessão de infraestrutura prevista nesse item.
Nesse sentido, a única possibilidade de tributação da cessão de infraestrutura pelo ISS será nos casos em que (i) a cessão for cumulada com prestação de serviço prevista como tributável noutro item e, também, (ii) não for possível segmentar o valor da cessão de eventual serviço agregado, também na linha da jurisprudência tradicional do STF.
A decisão que acaba de ser publicada é, portanto, uma grande vitória. Não apenas dos contribuintes, que verão afastadas cobranças que jamais deveriam ter sido constituídas, mas também das municipalidades, que terão os contornos da sua competência definidos com mais precisão e, assim, poderão evitar milhares de cobranças sem fundamento jurídico. Mais do que as partes envolvidas, o Egrégio Supremo Tribunal Federal sai vitorioso ao manter consistente a reiterada jurisprudência, que vem sendo construída com debates e ampla discussão com a sociedade nas últimas décadas.
*Fonte: jota.info
PAULO DE BARROS CARVALHO – Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-SP e advogado
TÁCIO LACERDA GAMA – Professor de Direito Tributário, graduação, mestrado e doutorado da PUC-SP e do IBET. Advogado.