Entre serenidade, coragem e sabedoria na reforma tributária dos combustíveis
A Oração da Serenidade é uma antiga e conhecida súplica a Deus para que Ele nos ajude a “aceitar as coisas que não posso mudar”, nos dê “coragem para mudar as coisas que posso” e, sobretudo, nos ilumine de “sabedoria para discernir uma da outra”. Três pedidos de graças simples “na teoria”, mas nada fáceis de identificação e efetivação “na prática”. Ainda mais quando se tenta aplicá-los à quase mítica Reforma Tributária brasileira, que há décadas desafia o imaginário de boa parcela dos contribuintes, cansados de conviver com um Sistema Tributário irracional, complexo e oneroso.
Ainda nesse campo meio jurídico-religioso-filosófico, fica claro que a busca pelo equilíbrio entre fé e realidade se faz ainda mais essencial no que se refere ao modelo tributário do ICMS incidente sobre os combustíveis, cuja arrecadação representa cerca de 20% dos ingressos nos cofres estaduais.
Explica-se. Apesar da evidente relevância financeira desse imposto para que os gestores estaduais disponham de recursos para (em tese) bem executar suas políticas públicas, a compreensão das regras de tributação aplicadas a esse mercado seriam desafio constante mesmo ao mais sereno, corajoso ou sábio dos seres humanos. E não é à toa: vão desde a aplicação de regimes distintos por produtos – que fisicamente se misturam (substituição tributária e não cumulatividade “ordinária”) –, passando por alíquotas diferenciadas para cada Estado, e chegando, em alguns casos, a repartições de receita para a mesma mercadoria. Haja serenidade…
De toda maneira, na busca constante pela sabedoria, de igual forma não se pode perder de vista a coragem para seguir no esforço pela mudança possível do Sistema Tributário aplicável aos combustíveis. E, como já dissemos em outras reflexões, isso passa muito pela implementação dos conceitos fundamentais previstos no Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 16/2021: incidência monofásica sobre produtor e importador (aplicada a valores fixos) e alíquotas únicas por combustível, para todo o território nacional. Destes pilares, nem o mais sereno dos cidadãos pode abrir mão.
Seja como for – e aqui não tem jeito –, parece ser evidente a necessária prática da serenidade para se lembrar e aceitar que interesses e conflitos sempre existiram e sempre existirão, seja em relação a esse tema ou a qualquer outro. Isso “é do jogo”, em especial quando se sabe que mudanças – ainda que positivas para a busca do bem comum (transparência, racionalização, simplicidade, redução de custos) – jamais deixarão de gerar perda a alguns, que irão resistir. E isso não é diferente no caso do PLP nº 16/2021.
Por exemplo: podem alegar revés certos Estados, cujas cargas tributárias sejam hoje mais elevadas do que a aplicável quando da implementação das alíquotas únicas. Perda, portanto, financeira (arrecadação). Da mesma sorte, ainda os Estados, podem entender estar havendo violação ao pacto federativo ao não mais disporem, com plena autonomia, das cargas em seus territórios – nessa linha inclusive chegou a se manifestar o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda, Finanças, Receita e Tributação dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz). Logo, suposta perda política (o que é bem controverso, mas que ficará para próxima reflexão).
Entretanto, se se faz necessária a prática da serenidade para aceitar e reduzir ao máximo – com diálogo e equilíbrio – os previsíveis conflitos decorrentes das questões acima, em igual medida se faz fundamental ter a coragem para enfrentar os que certa e justamente perderão com a simplificação e a racionalização do Sistema. Aqueles que hoje ganham, em detrimento da sociedade – leia-se: próprio Fisco e bons contribuintes –, com o caos do regime de tributação do ICMS incidente sobre combustíveis, aproveitando suas brechas e causando rombos os cofres públicos e à livre concorrência.
Coragem, portanto, contra os devedores contumazes, “contribuintes” que optam, dolosa e sistematicamente, pelo não pagamento de tributos. Para esses, a previsibilidade e a estabilidade tributárias que a aplicação do regime monofásico trará, atrelada à definição, por produto, de alíquotas uniformes de ICMS em todo o território nacional, será um duro golpe.
Ora, com a incidência e a cobrança únicas e sem a diferença de alíquotas entre Estados, esses sonegadores deixarão de ter acesso ao trânsito financeiro das operações, uma vez que (i) todos os recursos tributários terão sido recolhidos pelo único contribuinte e (ii) sequer haverá a chance de complemento ou restituição do imposto, como consequência da aplicação de alíquotas uniformes de ICMS em todo o território nacional. Portanto, cabeça erguida e andar firme nesse corajoso percurso de “ganha-ganha” para as Fazendas Públicas estaduais e para os contribuintes bons pagadores.
Diante dessas reflexões, o que aqui fundamentalmente se pretende compartilhar é que, se a serenidade é indispensável, a cada um de nós, como cidadãos, para reconhecer, aceitar e atenuar as disputas políticas que decorrerão de uma proposta como a ora exposta, igualmente para nós, agora como membros da sociedade, não pode faltar coragem para seguir no caminho da necessária mudança. E isso se deve perseguir em especial na defesa da total indiferença sobre quem serão as mães ou os pais da iniciativa prevista no PLP nº 16/2021. Seus propósitos de simplificação, racionalização e transparência do regime tributário do mercado de combustíveis devem ser repetidamente explicitados, já que se trata de alteração que, por evidente, trabalhará em prol do bem comum.
É aqui que, de forma meio presunçosa, se tenta atingir a sabedoria. Veja-se.
Por um lado, serenamente, (i) reconhece-se a impossibilidade de ajuste de todas as complexas e ineficientes regras que há muito estão estabelecidas no modelo tributário do mercado de combustíveis, bem como (ii) sabe-se que ocorrerão conflitos entre os entes – seja dos Estados contra a União, pela maternidade/ paternidade de propostas ou em relação à suposta perda de autonomia, seja dos Estados, entre si, por alegadas perdas de arrecadação no comparativo entre presente e futuro. Cientes desses impedimentos e obstáculos, não haverá avanço sem resiliência e diálogo. Algo ficará para o futuro.
Mas, por outro lado, corajosamente, (i) identifica-se que certas premissas – incidência monofásica por produto e alíquotas únicas em todos os Estados – precisam ser defendidas ao extremo, pois resguardam os propósitos de racionalização, simplificação e transparência que há tanto se almeja atingir no modelo tributário dos combustíveis, assim como (ii) evidencia-se que Fazenda e bons contribuintes ganharão com essas mudanças, tanto em otimização da fiscalização e da arrecadação, quanto em efetivação dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. Cientes dessas necessidades, é preciso que não percamos o momento histórico, de (ainda) relativa convergência, para avançar. Algo tem que ficar para o presente.
Dito isso, já próximo de concluir, lembre-se que estas reflexões foram iniciadas destacando o eterno desafio humano de busca pela sabedoria, sobretudo na identificação do que se pode e do que não se pode modificar.
Não à toa, ao se chegar a esse momento final, mantendo-se em mente também que a ampla Reforma esperada pelas Propostas de Emenda Constitucional nº 45/19 (Câmara) e nº 110/19 (Senado) deverá ficar, mais uma vez, na promessa, o caminho natural seria, serenamente, resignar-se.
Afinal, mesmo destino deve ter o PLP nº16/2021 (ou qualquer outro que traga os conceitos principais nele previstos).
Entretanto, ciente mais uma vez dos riscos que se corre de se passar longe da sapiência, é preciso insistir. Apesar dos impedimentos e dos obstáculos que essa necessária mudança enfrenta para ir adiante, seus propósitos valem a pena a briga. Valem porque, além de todo o exposto em específico para o mercado de combustíveis, pode-se estar diante de um primeiro passo efetivo para trazer maior consciência cidadã a nós, contribuintes brasileiros. Se hoje não sabemos ao certo “quem?”, “o que?”, “quanto?”, “como?”, “quando?”, nem, muito menos, “por que?” pagamos tantos e obscuros tributos em nosso país, que os conceitos do PLP nº 16/2021 de racionalização, simplicidade e transparência possam começar a nos ajudar a responder a essas perguntas, para um futuro de real cidadania fiscal.
Por isso, se dentre todas as pretensas reflexões anteriores, exibidas nessas linhas de quase desabafo, uma tiver que ser trazida à tona para nela me agarrar, por certo não será a serenidade e, infelizmente, também não a sabedoria… Vamos em frente: Coragem.
*Fonte: jota.info
FABIO SILVA ALVES – Membro da Comissão de Defesa do Contribuinte e Política Fiscal da OAB/RJ.