STF e tributação da tecnologia
Para surpresa de todos, no último dia 15 de abril, o STF aprovou, em sessão virtual e por unanimidade, o teor da mais nova Súmula Vinculante (SV) do Tribunal – SV nº 57 – , com a seguinte redação: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias”.
Embora a aprovação do enunciado tenha surgido como resultado da sessão virtual que apreciou a Proposta de Súmula Vinculante (PSV) nº 132, apresentada pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), a matéria de fundo não era nova para os magistrados que foram remetidos ao debate enfrentado no julgamento do RE nº 330.817, em março/2017.
O referido recurso, ao qual foi aplicada a sistemática de reconhecimento de repercussão geral em 2012, fez com que o Tribunal se debruçasse sobre tema há tempo debatido pelos tributaristas: a evolução tecnológica e o seu impacto nas materialidades econômicas eleitas ou retiradas pelo constituinte no âmbito de incidência dos tributos. O caso restringia-se a pleitear a imunidade tributária do art. 150, IV, d, da Constituição, para os livros eletrônicos comercializados em CD-Rom.
Quando julgado o mérito, dada a velocidade de evolução da economia digital, a questão já era outra. Em 2017, o problema central era saber se a imunidade aplicada a livros eletrônicos se estenderia aos respectivos suportes físicos. Seguindo voto e proposta de tese apresentada pelo relator, Min. Dias Toffoli, o Tribunal entendeu pela extensão da imunidade, tanto aos e-books, quanto aos e-readers, cuja existência era incogitável em 1999, ano do ajuizamento da ação na origem.
Os Ministros, por unanimidade, consideraram ser aplicável a norma imunizante para os e-books e e-readers, esses mesmo que estejam acompanhadas de funcionalidades acessórias ou rudimentares, como acesso à internet para o download de livros digitais. Ao final, o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral: “a imunidade tributária constante do art. 150, IV, d, da CF/88 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo”.
Aparentemente solucionada, a matéria retornou à Corte em agosto/2018, com a finalidade de reproduzir a tese, agora, na forma de súmula vinculante, para cujos requisitos são controvérsia atual e insegurança jurídica.
A Brasscom comprovou a necessidade da edição da súmula com a apresentação de autos de infração lavrados pela Refeita Federal e pelas Secretarias de Fazenda dos Estados sobre a importação/comercialização de e-readers no mercado interno, o que levou à multiplicação de processos judiciais nas instâncias ordinárias.
E esse é o primeiro ponto que merece destaque: muito embora o Supremo Tribunal houvesse decidido definitivamente o tema em sede de repercussão geral, na qual garante imunidade tributária inclusive aos leitores de livros digitais, os órgãos da Administração Pública da União e dos Estados, aparentemente, mantiveram as mesmas condutas anteriores ao pronunciamento da Corte, por entenderem que o precedente não os vinculava uma vez que foi firmado em controle difuso e não em controle concentrado.
O segundo, refere-se à questão dos e-readers, surgida no julgamento do recurso extraordinário, e que parece ter dificultado a aplicação da tese pelas autoridades fiscais, tendo em vista que os suportes de leitura também evoluíram tecnologicamente e já não possuíam a função exclusiva de leitura, passando a ter, também, funcionalidades acessórias.
Quanto ao primeiro ponto, tem-se que a oposição deliberada da Administração a se vincular à tese de julgamento gerou ônus desnecessários ao desembaraço aduaneiro das mercadorias, implicando aumento injustificável da quantidade de litígios. Tal fato, na verdade, apareceu da contramão de uma tendência observada de aproximação – ou melhor, confusão – dos efeitos do controle concentrado de constitucionalidade e do controle difuso, sobretudo após a criação da sistemática da repercussão geral e da adoção de teses de julgamento, fenômeno aprofundado pelo Código de Processo Civil/2015 no ponto em que determina cabível a reclamação em face de acórdão proferido pela Corte em julgamento de recurso representativo de controvérsia.
A desconsideração de um precedente que reconheceu uma não incidência tributária parece ainda mais grave e tem as mais diversas consequências: autuações administrativas, retenção de mercadorias, judicialização, enfim, uma excessiva burocratização das operações desenvolvidas pelos contribuintes.
Quanto ao segundo ponto, tem-se que certamente estão fora do escopo da tese de repercussão geral os aparelhos multifuncionais, como smartphones e tablets. No entanto, as ditas funções secundárias, como dicionário de sinônimos, tradutores, marcadores, aplicativos para escolha de tipo e tamanho da fonte, são apenas exemplificativas. O elemento da exclusividade para a leitura parece ter sido utilizado como um complicador adicional para a aplicação automática do precedente pelas autoridades fiscais, condicionando-a a um juízo da Administração para definição do enquadramento do aparelho na categoria de instrumento exclusivo ao suporte de e-books, cujos aditivos voltam-se puramente ao auxílio da leitura.
O que salta aos olhos, contudo, é o inegável fenômeno da abstrativização ou objetivação do controle difuso de constitucionalidade, com reflexos ainda mais relevantes em matéria tributária, uma vez que cabe à Administração a fiscalização das operações, a constituição dos créditos e a sua cobrança.
Surgem, assim, duas perguntas: (i) a cada vez que o STF decidir em repercussão geral pela desoneração ou inconstitucionalidade de determinada incidência tributária, será necessária a edição de uma súmula vinculante com a simples finalidade de fazer a decisão ser cumprida pelos órgãos do Poder Executivo? (ii) caso a Corte houvesse decidido sobre a extensão das imunidades aos e-readers em ADI, em vez de repercussão geral, haveria negativa de cumprimento pela Administração?
A resposta a ambas nos parece negativa, tanto pela aproximação normativa, jurisprudencial e fenomenológica dos controles de constitucionalidade adotados em nosso ordenamento, quanto por deveres impostos à Administração que devem nortear sua atuação – moralidade, economicidade, motivação dos atos e cumprimento de determinações judiciais.
Além disso, a sensação é de que o sistema brasileiro de precedentes está fundado justamente na premissa oposta à de um sistema ideal de precedentes, que pressupõe a racionalidade e a integridade do ordenamento. No sistema à brasileira, criam-se os precedentes ditos obrigatórios para, paradoxalmente, antecipar-se ao descumprimento, sendo o próprio Estado um dos agentes que contribuem para a instabilidade das relações jurídicas.
Por fim, no que se refere ao óbice de que a tese da repercussão geral seria aplicável apenas aos suportes exclusivamente utilizados para leitura, sem abranger aqueles com funcionalidades acessórias, entendemos que se trata de questão mais complexa, que esbarra, novamente, em avanços tecnológicos imprevisíveis e, portanto, possui menos chances de receber uma resposta definitiva sobre o conceito de acessoriedade. De todo modo, a nosso ver, a Administração deve se insurgir, se for o caso, apenas nas situações em que as funcionalidades acessórias desvirtuarem a missão básica, e sempre preponderante, de um leitor digital.
O que nos cabe é reiterar a necessidade de um debate expresso a ser levado ao Supremo Tribunal Federal em relação à aproximação entre os efeitos dos controles de constitucionalidade difuso e concentrado e o (desnecessário) papel da SV para fazer valer acórdãos proferidos em repercussão geral, o que implicará significativo avanço para a jurisdição constitucional brasileira e considerável aumento da segurança jurídica em matéria tributária.
*Fonte: jota.info