Pela reforma, um combustível para a simplificação tributária
Março de 2021. É impossível escrever sobre qualquer assunto nesse momento ignorando o que o nosso país vivencia. Epicentro da pandemia, toda exposição de ideias precisa respeitar essa realidade, demonstrando que nela está inserida e que aquele que, com humildade, as compartilha, compreende que nada é mais importante agora que cuidar das pessoas e salvar vidas. Portanto, quem está por trás dessas palavras passa longe de negar os fatos.
De toda maneira, exatamente por manter o olhar no presente, mas também por tentar elevá-lo à construção de um futuro melhor, esse mesmo escritor identifica outro fato, que, quer queira ou não, “está na mesa”: uma real e relevante possibilidade de melhoria do Sistema de Tributação Nacional. E isso, por si só, pode representar um passo gigantesco na evolução da forma como Fisco e contribuintes se relacionam com os tributos, que são – como sempre soubemos, mas a pandemia ainda mais nos evidenciou – a principal ferramenta de financiamento de políticas públicas estatais.
Pois bem. Feita essa longa – mas necessária – contextualização, vamos nos aprofundar nos fatos: está pendente de análise pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 16/2021. Este reflete bem, em seus pouco artigos, aquilo que na essência se propõe: trazer simplicidade, objetividade e maior transparência ao modelo de tributação dos combustíveis, um dos mais complexos e financeiramente relevantes – cerca de 25% de todas as receitas dos Estados com o “popularmente” conhecido Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – do nosso ainda mais complexo Sistema.
Por meio de seus oito dispositivos, esse pretenso ato normativo concentra avanços há muito aguardados pela sociedade no que se refere à cobrança do ICMS incidente sobre combustíveis. Aqui, sem a pretensão de passar ponto a ponto todas as evoluções que se enxerga na sua aprovação, serão expostas três previsões jurídico-tributárias específicas contidas em suas linhas, as quais podem nos deixar, ao menos, esse legado positivo, conquistado durante o período pandêmico.
Primeiro lugar: incidência monofásica.
Pela leitura do preâmbulo e do artigo 1º do PLP, verifica-se que o mesmo abre suas disposições estabelecendo a incidência única (monofásica) do ICMS sobre 13 tipos de combustíveis e lubrificantes, dentre os quais gasolina, diesel e etanol (álcool combustível). Trata-se de avanço monumental em comparação ao modelo atual de tributação desses produtos. Veja-se:
Com previsão da incidência monofásica – ou seja, única, recaindo apenas sobre um contribuinte (produtor ou importador) –, o PLP nº 16/2021 faz com que a substituição tributária (artigo 150, § 7º, da Constituição) seja, enfim, eliminada do Sistema como regime preponderante na cobrança do ICMS incidente sobre os combustíveis. Em termos práticos, com a alteração para a monofasia, muito da complexidade do modelo vigente será extinta, já que o imposto será devido e cobrado apenas do elo inicial da cadeia econômico-produtiva. E melhor: tudo em linha com o que já dispõe a própria CF/88, conforme sua alínea “h”, do inciso XII, § 2º, do artigo 155. Logo, mudança com constitucionalidade indiscutível.
Dito isso, identifiquemos os ganhos “práticos” para o Sistema e para seus personagens, começando pelos olhos das autoridades fiscais.
Para as Fazendas, a aprovação do PLP trará otimização e maior racionalidade ao seu trabalho, já que o concentrará em pouquíssimas pessoas jurídicas. Registre-se que, por mais que a substituição tributária até tivesse tido essa pretensão quando da edição da Emenda Constitucional nº 03/1993, é fato que nesse regime existem vários contribuintes na cadeia (substituto e substituídos). E isso, conceitualmente, já impõe maior desafio aos fiscais estaduais do que o modelo monofásico. Nesse, apenas um membro da mesma cadeia econômico-produtiva ostenta o título de contribuinte. Ponto final.
Aliás, não à toa que, agora aos olhos dos (atuais) contribuintes do mercado de combustíveis, não há como deixar de enxergar simplificação e racionalização com a implementação da monofasia, já que a substituição lhes trouxe severos ônus tributários e financeiros.
Isso porque, no modelo em vigor, mesmo quando substituídos, pode caber a esses contribuintes a realização de pagamento complementar do ICMS, ainda que esse imposto já tenha sido recolhido pelo contribuinte substituto. Ou pior: podem ter de enfrentar a “missão” de apresentar pedidos de ressarcimento perante as Administrações Fazendárias, justamente por conta da (indevida) carga tributária a maior que suportaram como contribuintes. Em resumo: complexidade e irracionalidade (e frustração, como já se verá).
Com a monofasia, essa “lógica” tende a sumir, vez que apenas um membro da cadeia será caracterizado como sujeito passivo da obrigação, retirando dos demais a possibilidade de arcar com tais ônus.
Portanto, se tivéssemos apenas esse mérito no PLP nº 16/2021, já valeria a “briga” pela sua aprovação. Mas existem outros.
Segundo lugar: definição de alíquotas uniformes, por produto, em todo o território nacional, especificadas por unidade de medida.
Se a incidência monofásica é o primeiro pilar na simplificação e na racionalização do sistema de tributação sobre os combustíveis oferecido pelo PLP nº 16/2021, é certo que o segundo é a definição de alíquotas uniformes, por produto, em todo o território nacional, especificadas por unidade de medida. Com a sua implementação, além dos êxitos expostos no item anterior, será corrigida, ao menos nesse segmento, uma consequência lamentável – embora, previsível e, à época, alertada – de decisão tomada há poucos anos pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse ponto, pausa pequena para lembrança.
No fim de 2016, o STF analisou o exposto pelo Recurso Extraordinário nº 593.849/MG. Na ocasião, a Corte entendeu pelo fim da definitividade no regime de substituição tributária (estabelecida e pacificada anos antes, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.851). Por consequência, a nova posição da Corte levou à possibilidade/ necessidade de restituição do valor do tributo pago a maior do que aquele que havia sido previsto.
Retornando ao presente, pergunta-se o seguinte: pleito dos contribuintes e, como tal, a eles favorável, certo? Não. O que se viu “no mundo real”, pós julgamento do RE nº 593.849/MG, foram duas decorrências dessa decisão: (i) exigência do complemento por parte dos Estados – ICMS presumido inferior ao efetivo – e (ii) quase que impossibilidade de restituição ao contribuinte – ICMS efetivo inferior ao presumido –, tamanhos os entraves impostos pelas autoridades fazendárias para devolver o dinheiro. Ou seja, mais complexidade tributária; maior frustração financeira.
Assim sendo, diante desse “legado”, é certo que a definição de alíquotas uniformes em todo o território nacional, especificadas por unidade de medida, pretendida pelo PLP nº 16/2021, porá fim a pedidos de complemento e restituição. E isso trará ao regime de tributação dos combustíveis, além da dita simplicidade, mais estabilidade e previsibilidade, tanto à relação entre Fisco e contribuintes, quanto aos preços dessas mercadorias.
Terceiro lugar: combate ao devedor contumaz.
Por falar em previsibilidade, estabilidade e preço, a aplicação do regime monofásico, atrelada à definição, por produto, de alíquotas uniformes de ICMS em todo o território nacional, será também um duro golpe aos chamados “devedores contumazes”. Aqueles “contribuintes” que optam, dolosa e sistematicamente, pelo não pagamento de tributos.
Isso porque, com a incidência e a cobrança únicas e sem a diferença de alíquotas entre Estados, esses sonegadores deixarão de ter acesso ao trânsito financeiro das operações, vez que (i) todos os recursos tributários terão sido recolhidos pelo único contribuinte e (ii) sequer haverá a chance de complemento ou restituição do imposto, como consequência da aplicação de alíquotas uniformes de ICMS em todo o território nacional.
Portanto, com a aprovação do PLP nº 16/2021, as portas da sonegação se fecharão para aqueles que competem de maneira desleal com os bons pagadores de tributos, os quais privam a sociedade de recursos essenciais para o implemento de ações sociais.
Pelo exposto, igualmente se o PLP nº 16/2021 tivesse somente esse mérito – de combater o devedor contumaz e todo o mercado irregular que ele alimenta –, já se teria motivo suficiente para se batalhar pela sua aprovação.
Combustível para a Reforma Tributária
Por falar em batalha, não se pode encerrar essa reflexão sem reiterar a forma como ela se iniciou, registrando-se novamente o respeito pela realidade imposta ao nosso presente e a ciência de que a luta principal agora é por cuidar da saúde e da vida de todos nós. De toda forma, buscando a coerência de manter o olhar no presente, mas sem ignorar o futuro que precisamos já construir juntos, as linhas acima focaram em um dos poucos legados que se pode deixar desse período: iniciar a caminhada em direção à Reforma do Sistema Tributário, tornando-o, finalmente, mais simples e racional.
Como visto, o ganho será para toda a sociedade, pois (i) ajudará as autoridades fazendárias a otimizarem seu trabalho de fiscalização – fomentando a arrecadação do ICMS no segmento mais relevante financeiramente aos cofres públicos –, bem como (ii) privilegiará o bom pagador, que terá simplificado e racionalizado seu compliance tributário, além de que deixará de sofrer a competição desleal dos grandes sonegadores do mercado de combustíveis.
Por fim, sempre com o foco na realidade, sabe-se que a aprovação de nenhum projeto de lei transforma, por si só, nossas vidas. Isso é resultado do que fazemos com as ferramentas que nos são oferecidas. Todavia, é evidente que, quanto melhores forem esses instrumentos, maiores as possibilidades que teremos de evoluir. Portanto, diante de todos os notórios ganhos para a sociedade, aproveitemos a oportunidade histórica de, enfim, iniciar o aperfeiçoamento urgente e imediato do nosso Sistema de Tributação, com a aprovação do PLP nº 16/2021. Ainda que isso não vá resolver nem mesmo apagar os duros problemas que devemos hoje enfrentar juntos, certamente nos ajudará a melhor cuidar da economia e da sociedade já a partir de amanhã.
*Fonte: jota.info
FABIO SILVA ALVES – Membro da Comissão de Defesa do Contribuinte e Política Fiscal da OAB/RJ. Coautor e organizador do Livro “Tributação na Distribuição de Combustíveis”. Pós-Graduado em Direito Tributário (IBET) e Auditoria Tributária (UFRJ). Graduado em Direito (UFF) e Jornalismo (UFRJ).