As isenções fiscais nos projetos de Reforma Tributária
Dentre as diversas reformas que têm sido pautadas com o intuito de reverter o quadro de crise fiscal pela qual a nação tem atravessado nos últimos anos, a Reforma Tributária possui especial relevância. Não apenas porque há consenso da sociedade acerca da excessiva complexidade do sistema tributário, mas também porque a alteração nas regras que disciplinam a arrecadação do Estado pode ser utilizada como meio de reverter os sucessivos déficits orçamentários que têm sido ocasionados pelo excesso de gastos frente à arrecadação. O atual ideário de que se faz necessária a Reforma Tributária tem em si contido um contexto que visa, dentre outros escopos, ao reequilíbrio das contas fiscais.
Nessa toada, a redução ou racionalização das renúncias fiscais consiste em um dos pontos sempre apontados como essenciais para a reforma estrutural do sistema tributário. Esse aspecto ganha especial contorno de relevância quando levado em consideração que se pode, com isso, aumentar a arrecadação pela via da reforma legislativa.
No atual momento, os Projetos de Emenda à Constituição nº 45/2019 e 110/2019 consistem nas principais medidas em tramitação legislativa para a almejada reforma tributária, as quais têm por objeto os tributos incidentes sobre o consumo. Assim, o presente esboço tem como objetivo a análise do tratamento das renúncias fiscais nos referidos projetos legislativos.
A doutrina tributária aponta como condicionantes da isenção a necessidade concessão por meio de lei específica, a não extensão aos tributos instituídos posteriormente à sua concessão e a impossibilidade de revogação de isenção concedida sob condição onerosa. Pontua-se ainda que a lei que a estabelece deve ser específica, na forma do art. 165, §6º, da Constituição. Em que pesem os limites já estabelecidos pelo texto constitucional, os projetos de reforma tributária pretendem ir além, reduzindo ainda mais as possibilidades de concessão de benefícios fiscais para a tributação a ser instituída no lugar da atualmente vigente.
A PEC 45/2019 prevê a instituição de IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) federal por meio de lei complementar, unificando os fatos geradores do que hoje consiste na hipótese de incidência de cinco tributos: o IPI, o PIS, a Cofins, o ICMS e o ISS. O principal mote para tal unificação consiste na simplificação do sistema tributário.
Aproveitando o ensejo da unificação dos tributos, a PEC 45/2019 também exclui a possibilidade de concessão de isenções. Pela proposta, será a acrescentado ao texto constitucional o art. 152-A, cujo §1º, inciso IV tem o seguinte texto:
Art. 152-A. União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em exercício comum de suas competências tributárias, exercidas por meio de lei complementar federal única, instituirão imposto sobre toda e qualquer operação com bens, serviços e direitos, que será uniforme em todo o território nacional, exceto pelas alíquotas, que poderão ser fixadas individualmente, por meio de lei local.
- 1º. O imposto sobre bens e serviços:
IV –não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação das alíquotas nominais;
A redação do texto, percebe-se, é bastante restritiva, excluindo qualquer possibilidade de isenção e vedando a redução da base de cálculo ou concessão de crédito presumido ou outorgado que resulte em carga tributária menor do que a decorrente da aplicação das alíquotas nominais.
A seu turno, a PEC 110/2019 não destoa desse mesmo objetivo. Seu principal mote também é a simplificação do sistema tributário, mediante a unificação de nove tributos distintos (IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS), instituindo, além disso, severas restrições à possibilidade de concessão de benefícios fiscais, mediante o acréscimo do art. 155, §7º, VIII ao texto constitucional:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir:
- 7° O imposto de que trata o inciso IV do c
aput deste artigo será instituído por lei complementar, apresentada nos termos do disposto no art. 61 , §§ 3° e 4°, e atenderá ao seguinte:
VIII- não poderá ser objeto de isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia, remissão ou qualquer outro tipo de incentivo ou benefício fiscal ou financeiro vinculado ao imposto, exceto, se estabelecido por lei complementar, em relação a operações com os seguintes produtos ou serviços:
- a) alimentos, inclusive os destinados ao consumo animal;
- b) medicamentos;
- c) transporte público coletivo de passageiros urbano e de caráter urbano;
- d) bens do ativo imobilizado;
- e) saneamento básico;
- f) educação infantil, ensino fundamental, médio e superior e educação profissional;
Denota-se que o legislador objetivou, da mesma maneira, restringir a possibilidade da concessão de isenções fiscais. Conferiu, contudo, a possibilidade de isenção, mediante lei complementar, para operações evolvendo determinados bens e serviços. Nota-se que o rol estabelecido nas seis alíneas, à exceção da alínea d, possui nítido caráter extrafiscal, que, alinhado ao princípio da capacidade contributiva, prevê a desoneração de operações ligadas ao mínimo existencial, o que acarreta a redução dos seus custos.
A impossibilidade da concessão de isenções fiscais, notadamente em tributo que incide sobre o consumo, possui sérias consequências no âmbito do sistema tributário e das relações econômicas. O fenômeno da isenção tributária consiste num dos mais importantes aspectos do Direito Tributário.
Trata-se de forte mecanismo de extrafiscalidade, por meio do qual o legislador pode dar concretude ao princípio da capacidade contributiva, bem como adotar medidas de interesse público, fomentando atividades econômicas, bem como, se corretamente utilizadas, de correção de distorções do mercado.
Por outro lado, a impossibilidade de concessão de benefícios fiscais pode trazer alguns benefícios ao sistema tributário. O primeiro e mais notório deles consiste exatamente no cerne em que repousa a reforma tributária: a simplificação da legislação. Caso impossibilitadas as isenções, cessam as controvérsias a ela inerentes, notadamente quanto ao enquadramento de determinadas operações nas regras isentivas. Outras controvérsias ínsitas à concessão de isenções, ademais, também são evitadas, notadamente as atinentes à guerra fiscal, as quais, somente no que concerne ao estorno de crédito presumido concedido sem autorização pelo Confaz, possuem, a título exemplificativo, impacto de R$ 9 bilhões ao Estado de São Paulo.
A vedação cuja instituição se pretende possui outro aspecto que igualmente merece relevo, consistente no saneamento das isenções fiscais atualmente concedidas. Com efeito, a instituição de isenção tributária acarreta verdadeiro gasto, na medida em que determinado valor em pecúnia, a que o Estado legalmente teria o direito de arrecadar, deixa de ser obtido, em benefício do contribuinte. Até mesmo por esta razão a Lei de Responsabilidade Fiscal concedeu atenção especial ao fenômeno, instituindo-lhe condições. Com efeito, esse contexto ganha especiais contornos de gravidade quando levado em consideração que o Projeto de Lei Orçamentária do Estado de São Paulo para o orçamento de 2021 possui previsão de déficit de 8,2 bilhões, ao mesmo tempo em que prevê o gasto tributário de 47,63 bilhões, apenas relativos ao ICMS.
Corrigir distorções ocasionadas pela concessão de isenções fiscais é confessadamente um dos objetivos da PEC 45/2019, conforme exposto pelo próprio CCIF, autor da proposta: “A estratégia de novo tributo modelar se justifica pela grande contaminação dos tributos atuais por isenções, incentivos e regimes especiais”. A justificativa tem por pressuposto que a inexistência de freios às isenções levaria os setores a buscarem tratamentos favorecidos, o que acarretaria distorções competitivas e alocativas.
Nota-se, portanto, que a limitação das possibilidades de concessão de benefícios fiscais contém ônus e bônus, que devem ser devidamente sopesados para definição da política a ser adotada pela reforma tributária. Se por um lado a impossibilidade de isenção do tributo único a ser criado traz um sistema simplificado e com pretensas menores distorções do mercado, por outro extirpa um importante mecanismo do Estado para concreção em maior medida o princípio da capacidade contributiva e do exercício da extrafiscalidade.
Não apenas isso, a própria constitucionalidade de uma reforma tributária que proceda a abolição de quaisquer isenções é passível de questionamentos. Com efeito, se a Constituição estabelece a redução das desigualdades regionais como um dos objetivos fundamentais da República e como um dos princípios norteadores da ordem econômica, instituindo incentivos fiscais como um dos seus mecanismos (arts. 3º, III, 170, VII, 43, §2º, III e 151, I, da Constituição), a limitação proposta pelo projeto de reforma tributária acarreta a vedação do uso de um importante instrumental para consecução dos objetivos fundamentais da República. Na mesma linha, o art. 145, §1º, da Constituição, expressamente prevê a gradatividade dos impostos conforme a capacidade econômica do contribuinte, de modo que a impossibilidade de concessão de isenções em tributos que incidam sobre o consumo potencialmente prejudica a concretização dos direitos fundamentais básicos de pessoas em situação de hipossuficiência.
Nessa toada, a PEC 110/2019 apresenta uma solução intermediária em relação à PEC 45/2019, prevendo um rol taxativo de hipóteses em que a isenção pode ser concedida mediante Lei Complementar. Nada obstante, quanto mais o projeto flexibilizar a rígida posição de impossibilidade de concessão de benefícios, mais estará se afastando dos seus objetivos iniciais de simplificação da legislação tributária.
As exceções previstas pelo art. 155, §7º, VIII, da PEC 110/2019 merecem destaque justamente por estarem ligadas ao núcleo de direitos fundamentais que é protegido pelo texto constitucional por meio de cláusulas pétreas, objetivando minorar os impactos negativos que a total impossibilidade de concessão de isenções no tributo único podem gerar. Sem necessariamente anular completamente os efeitos negativos decorrentes da opção pela mitigação da possibilidade isenção, a previsão da PEC 110/2019 apresenta uma alternativa aparentemente mais bem alinhada com a garantia de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.
À guisa de conclusão, tem-se que os projetos de reforma tributária atualmente em tramitação preveem a limitação, no caso da PEC 110/2019, e a total vedação, no caso da PEC 45/2019, da concessão de isenções sobre o tributo único a ser criado para substituição da hoje difusa tributação das operações que envolvem o consumo de bens e serviços. Referida opção encontra-se alinhada com o ideário de simplificação que rege a reforma tributária, buscando, ademais, a racionalização dos benefícios fiscais concedidos e podendo, mais do que isso, ser mecanismo de equilíbrio das contas fiscais. Por outro lado, a impossibilidade da concessão de isenções retira do Estado um importante mecanismo de extrafiscalidade e correção de desigualdades, sendo passível de questionamentos quanto à própria constitucionalidade da medida. Assim, o prosseguimento da reforma deve ter em vista os benefícios e malefícios atinentes a cada opção proposta.
*Fonte: jota.info
ALISSON JULIAN RHENNS – Procurador do Estado de São Paulo