Os caminhos para a negociação de dívidas tributárias
Nos últimos anos tem ocorrido movimento significativo de mudança da cultura litigiosa no âmbito tributário com o surgimento do interesse das partes em estabelecer um diálogo construtivo e a agregação de novos instrumentos à disposição dos sujeitos da relação jurídica tributária.
Nesse contexto, dois institutos importantes têm despertado a curiosidade dos contribuintes na resolução de conflitos tributários: a Transação em Matéria Tributária e o Negócio Jurídico Processual. Muito já se falou a respeito, mas, na prática, ainda existem diversas dúvidas quanto à aplicabilidade e à eficiência dos instrumentos.
Recentemente, os contribuintes receberam com entusiasmo a edição da Lei n.º 13.988/2020, resultado da conversão da Medida Provisória 899/2019. A legislação, inovadora no sistema jurídico tributário, estabelece requisitos e condições para que a União e os devedores possam transacionar débitos, criando mecanismos que induzem à autocomposição em causas de natureza fiscal.
A publicação da lei é um marco no cenário de negociação de dívidas junto à Fazenda Pública, pois se trata de um promissor canal de comunicação a ser estabelecido entre contribuinte e fisco.
A novidade veio a calhar no cenário de pandemia instaurada pela COVID-19 e se tornou mais uma opção à disposição dos contribuintes para implementação de planos de negócios de recuperação fiscal, de maneira a auxiliar no enfrentamento da crise e proteger os milhares de empregos que estão em risco.
A Lei possibilita que dívidas perante a União Federal sejam negociadas e regularizadas, por iniciativa individual ou por adesão ao plano governamental. A primeira é hipótese de proposição pelo fisco ou pelo contribuinte, enquanto a segunda é uma proposta feita de forma unilateral pela Fazenda Pública.
Como a própria nomenclatura sugere, a adesão estabelece formatos de transação previamente definidos e não oferece às partes a possibilidade de negociar os termos controvertidos. Por outro lado, a iniciativa individual, ainda que com algumas limitações normativas, oferece maior flexibilidade às partes envolvidas para dispor sobre o formato da negociação.
A Procuradoria da Fazenda Nacional foi pioneira e editou alguns atos normativos sobre a matéria. Atualmente, existem quatro modalidades de transação para débitos inscritos em dívida ativa, disciplinadas pelas Portarias PGFN n.º 9.917/2020, 9.924/2020 e 14.402/2020 e pelo Edital PGFN nº 001/2019:
a) transação individual proposta pelo contribuinte ou pelo fisco, para débitos acima de 15 milhões de reais;
b) transação por adesão para dívidas abaixo de 15 milhões, conforme hipóteses previstas no Edital PGFN 001/2019 (prazo para adesão até 30 de junho);
c) transação extraordinária (prazo para adesão até 30 de junho);
d) transação excepcional (disponível para adesão a partir de 1º de julho).
A transação, seja na modalidade individual ou por adesão, pode contemplar os seguintes benefícios: (i) concessão de descontos nas multas, juros e encargos legais, de acordo com as regras dispostas na lei; (ii) concessão de prazos e formas de pagamentos especiais, incluindo o diferimento e a moratória, e (iii) substituição ou a alienação de garantias e constrições.
Para análise da concessão dos benefícios, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional examinará a situação econômica dos devedores por meio da verificação das informações cadastrais, patrimoniais ou econômico-fiscais prestadas pela parte interessada.
Algumas obrigações e condições poderão ser estipuladas pela Procuradoria, especialmente em relação ao cumprimento do dever do contribuinte de quitar novos débitos que venham a ser inscritos em dívida ativa.
Ocorre que, por mais louvável que seja a iniciativa, o que temos visto na prática é a baixa aplicabilidade do instituto nas modalidades “adesão” e “proposta individual”.
As hipóteses trazidas no Edital PGFN 001/2019 que disciplina a modalidade “adesão” são restritas, como por exemplo, a eleição de débitos de até 15 milhões referentes a pessoas jurídicas baixadas, inaptas ou suspensas no cadastro CNPJ ou débitos inscritos há mais de 15 (quinze) anos. Há, também, certa reticência nas negociações individuais em razão de limitações impostas pela Procuradoria e das exigências relacionadas à entrega de documentação sigilosa e essencial aos negócios.
Considerando o cenário ainda restrito para negociações previstas no Edital publicado pela Procuradoria e a proximidade do prazo limite para adesão das propostas atualmente disponíveis (30 de junho), em razão da crise financeira que enfrentamos, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional publicou a Portaria PGFN nº 14.402/2020 (Transação Excepcional) editada como uma opção para a negociação de débitos, com benefícios.
A Procuradoria-Geral da Fazenda ressaltou que a Transação Excepcional não é um “Novo REFIS”, pois diferentemente desses parcelamentos, a concessão dos benefícios será pautada e condicionada a análise da necessidade ou da situação econômica do contribuinte. Trata-se de transação na modalidade “adesão” que estará disponível aos contribuintes a partir de 1º de julho, por meio da qual será possível parcelar as dívidas em até 84 meses ou 145 meses, a depender do porte do devedor, com a possibilidade de descontos de multa e juros.
Outro movimento importante que merece destaque é a publicação pelo Ministério da Economia da Portaria n.º 247, de 16 de julho de 2020, disciplinando os procedimentos e regras a serem observadas na transação por adesão na modalidade denominada de “contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica e no de pequeno valor”. Apesar da publicação da regulamentação, a norma não possui efeito imediato, de forma que os contribuintes devem aguardar a publicação de novos editais pela Secretaria Especial da Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional com propostas de adesão relacionadas à matéria.
Dentro do cenário de possibilidades diversas de negociação das dívidas tributárias, também vale a pena mencionar o instituto do Negócio Jurídico Processual (NJP), que consiste na expressa autorização legislativa para que as partes litigantes em processos tributários possam encontrar soluções para os conflitos.
As negociações por meio do NJP são mais factíveis em comparação à transação tributária na modalidade individual. Como se trata de instrumento mais antigo e que não concede redução no valor da dívida, parece-nos haver um maior conforto em sua aplicação por parte do fisco.
O Negócio Jurídico Processual, cujos procedimentos foram regulamentados pelas Portarias nºs 360 e 742 de 2018, pode atuar na (i) calendarização da execução fiscal; (ii) no plano de amortização dos débitos inscritos em dívida ativa fiscal em até 120 parcelas; (iii) na aceitação, avaliação, substituição e liberação de garantias; e (iv) no modo de constrição ou alienação de bens.
Para algumas empresas, a possibilidade de negociar com o fisco a flexibilização do pagamento dos débitos, discutir sobre as garantias apresentadas e atuar no modo de constrição ou alienação de bens, pode representar uma vantagem significativa para o planejamento de uma recuperação fiscal.
Assim como a Transação Tributária, a instauração de Negócio Jurídico Processual é liberalidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional que, diante da análise casuística do contexto em que inserido o contribuinte e do plano de negociação a ser apresentado, poderá deferir ou não a negociação.
Mencione-se também que, com a notícia de que tramita na Câmara dos Deputados nova proposta de programa de recuperação fiscal (Projeto de Lei nº 2735/2020 – PERT-COVID-19), há o risco de retomarmos o ciclo vicioso do afastamento da conformidade fiscal na espera de parcelamentos e anistias milagrosos.
O cenário de frequentes programas de anistias e parcelamentos não nos parece ideal, pois os instrumentos de negociação devem ser perenes e suficientes à manutenção de um cenário de estabilidade financeira para as partes, de modo a trazer previsibilidade, segurança jurídica e contenção do número de litígios tributários.
A atitude ainda tímida da Procuradoria e dos contribuintes na utilização dos instrumentos de negociação recentes é compreensível, na medida em que se trata de terreno pouco desbravado. Porém, é preciso alterar esse cenário e investir na Transação Tributária e no Negócio Jurídico Processual no intuito de ampliar a assistência aos contribuintes, especialmente durante a crise econômica, e fortalecer as relações entre as partes, implementando alternativas e condições para que os contribuintes consigam regularizar suas dívidas.
O caminho para a construção de uma relação de confiança entre o fisco e o contribuinte parece promissor. É preciso enaltecer as pequenas vitórias e avanços legislativos, mas é necessário atenção para fomentar o desenvolvimento e a aplicabilidade eficiente e mais abrangente dos institutos criados.
Cabe ao operador do direito trabalhar para mudar a ideia arcaica de fisco versus contribuinte e valorizar as iniciativas, como a Transação em Matéria Tributária e o Negócio Jurídico Processual, que são capazes de propiciar um cenário de estabilidade, confiança e, consequentemente, um ambiente de negócios mais seguro.
*Fonte: jota.info