ICMS: O fim da isenção para o setor da saúde?
O estado de São Paulo publicou recentemente alguns normativos que dispõem, dentre outras matérias, sobre medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas e alteram disposições contidas no Regulamento do ICMS paulista (RICMS/SP).
Com vistas a se preservar a harmonia entre os estados e entre estes e o Distrito Federal, a Constituição Federal, em seu artigo 155, XII, “g”, determina que lei complementar deverá regular como benefícios fiscais serão concedidos ou revogados, mediante deliberação de tais entes.
Nesse sentido, a Lei Complementar nº 24, de 07 de janeiro de 1975, prevê que todos os incentivos fiscais concedidos por um determinado ente devem ser previamente autorizados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), por meio da publicação de Convênios específicos.
O estado de São Paulo, apoiado em Convênios firmados na forma acima, concede isenção de ICMS para diversos setores e produtos, sendo os mais relevantes para a área da saúde os seguintes:
- Insumos médico-hospitalares: isenção prevista no art. 14 do Anexo I do RICMS/SP e aprovada pelo Convênio 01/1999;
- Medicamentos genéricos: isenção prevista no 92 do Anexo I do RICMS/SP e aprovada pelo Convênio 140/2001;
- Medicamentos – gripe A: isenção prevista no art. 150 do Anexo I do RICMS/SP e aprovada pelo Convênio 73/2010;
- Medicamentos – AIDS: isenção prevista no art. 2º do Anexo I do RICMS/SP e aprovada pelo Convênio 10/2002; e
- Medicamentos – câncer: isenção prevista no art. 154 do Anexo I do RICMS/SP e aprovada pelo Convênio 162/1994.
A redação original do RICMS/SP – em vigor até 31 de dezembro de 2020 – previa que as isenções supramencionadas estariam vigentes enquanto os Convênios que fundamentassem tais incentivos estivessem vigorando, como de fato estão até hoje.
Os Convênios 01/1999, 140/2001 e 73/2010 tiveram sua vigência inicialmente prorrogada: (i) para 31 de outubro 2020 pelo Convênio 133/2019; posteriormente (ii) para 31 de dezembro de 2020 pelo Convênio 101/2020; e finalmente (iii) para 31 de março de 2021 pelo Convênio 133/2020. Já os Convênios 10/2002 e 162/1994 não possuem termo final de vigência.
Em que pesem as considerações acima, em 28 de agosto de 2020, houve a publicação do Decreto nº 65.156, por meio do qual o governo paulista definiu que a vigência de diversos benefícios fiscais do ICMS (isenções, reduções de base de cálculo e créditos outorgados) se encerraria em 31 de outubro de 2020, incluindo-se aí os medicamentos, equipamentos e materiais médico-hospitalares que mencionamos anteriormente.
Em outubro/2020, considerando a crise econômica desencadeada pela pandemia do coronavírus, o governo paulista adotou algumas medidas objetivando o saneamento das contas públicas, por meio da edição da Lei Estadual nº 17.293, e, dentre outras previsões, autorizou o Executivo a reduzir os benefícios fiscais de ICMS.
Também foram publicados os Decretos nº 65.254 e nº 65.255, ambos de 15 de outubro de 2020, que, se por um lado adiaram para 31 de dezembro de 2020 o encerramento da vigência das isenções em questão, por outro, acabaram restringindo a isenção tributária às operações com insumos e medicamentos destinadas a unicamente a hospitais públicos ou santas casas.
Com essas mudanças, a partir de janeiro do ano corrente a cadeia de abastecimento de medicamentos, equipamentos e materiais médico-hospitalares passa a ser excessivamente onerada pelo ICMS no estado de São Paulo.
A despeito das alterações realizadas na legislação paulista, em nosso pensar, o encerramento da vigência dos incentivos na forma promovida afronta a legislação que rege o tema, inclusive a Constituição Federal, conforme passaremos a demonstrar.
Em consonância com o já mencionado artigo 155, XII, “g”, da Constituição Federal, a Lei Complementar nº 24/75, ao dispor sobre a obrigatoriedade dos Convênios para a concessão de isenções do ICMS, determina que “a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes [dos Estados e do Distrito Federal presentes”.
Vê-se bem que a regulação em comento favorece, a um só tempo, a harmonia entre os entes federados que tenham celebrado o convênio e a equivalência de tratamento tributário no âmbito destes. Sobre este último aspecto, aliás, há que se ressaltar a nítida a finalidade da legislação em assegurar que sejam observadas a isonomia tributária e a vedação à discriminação em função da origem ou destino do bem ou serviço, na forma do artigo 150, II, e 152 da Constituição Federal.
O próprio Superior Tribunal de Justiça, ao analisar situação análoga, firmou entendimento no sentido de que “a restrição de benefício fiscal, acordado entre os Estados-membros em deliberação do CONFAZ, com base em enumeração casuística de determinadas patologias, previstas em Decreto Estadual, esvazia o próprio convênio celebrado, representando verdadeira revogação unilateral disfarçada de regulamentação discricionária”.
Mesmo que fosse possível admitir a revogação das isenções aqui tratadas por ato unilateral, seria necessário, ao menos, que tivesse ocorrido por meio de lei – e somente naquilo que os Convênios autorizem –, sob pena de ofensa aos artigos 150, I e § 6º, da Constituição Federal, bem como aos artigos 97 e 111 do Código Tributário Nacional.
Há que se ter em mente ainda a impossibilidade da revogação da isenção fiscal enquanto não encerrado o prazo de vigência previsto nos respectivos Convênios, sob pena de ofensa à confiança do contribuinte, que detém a expectativa legítima de aproveitamento do incentivo validamente concedido, e, pois, à segurança jurídica.
Confira-se sobre o assunto as valiosas lições do professor Heleno Tôrres:
Na sua feição de Estado Democrático de Direito, a reserva da proteção à confiança é um mínimo inatacável. E como se isso não bastasse, com qualquer resistência à aplicação do convênio em vigor violam-se, ademais, os princípios de moralidade e de impessoalidade.
Nenhuma lei interna pode promover, unilateralmente, regime diverso da isenção autorizada em convênio.
Em vista disso, qualquer convênio que cria isenção não poderá ser objeto de modificação interna, sequer por lei ordinária, salvo naquilo que o Convênio autoriza.
Além dos vícios que indicamos acima, a redação trazida pelos Decretos nº 65.254/2020 e nº 65.255/2020 acerca da revogação da isenção fiscal do ICMS nas operações destinadas às entidades que não sejam classificadas como hospitais públicos ou santas casas, instituiu, de forma infundada, tratamento discriminatório, a depender do destinatário (contribuinte de fato) da operação, acarretando, de plano, nítida violação à isonomia tributária, não só na forma do artigo 150, II, da Constituição Federal, mas também do seu artigo 152, que veda“ aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino” (grifamos).
Urge, portanto, que o governador do estado de São Paulo reveja as medidas adotadas, até porque a conta voltará em grande medida para o próprio poder público, tendo em vista que parte da população não terá condições de arcar com os aumentos de preços de serviços e planos de saúde e acabará fatalmente migrando para o SUS, onerando ainda mais o sistema.
*Fonte: jota.info
RENATO NUNES – Doutor, mestre e especializado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
LAIS HELENA BUENO DA SILVA – Advogada. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.