Arbitragem tributária: por uma nova justiça fiscal
Em tempos de pandemia nos é dada a oportunidade de refletir em como podemos ser e fazer diferente. Como bem colocou o Ministro Luís Roberto Barroso, em artigo veiculado no Jornal O Globo, datado de 13 de abril de 2020, “e se não voltássemos ao normal? E se fizéssemos diferente?” Isso vale para todas as esferas da vida em sociedade, inclusive para o ambiente jurídico.
O sistema tributário nacional, historicamente, se resume a um enorme emaranhado de leis e regulamentos, de dificílima compreensão, com inúmeras contradições, emanado das três esferas da federação, associado a um modelo de solução de conflitos moroso, ineficiente e juridicamente inseguro, que começa na esfera administrativa e termina anos depois, às vezes apenas após décadas, no Judiciário. Um verdadeiro carnaval tributário, na feliz expressão de Alfredo Augusto Becker. Tributação irracional, processos sem fim e decisões absolutamente imprevisíveis. Eis a triste síntese da realidade fiscal do Brasil.
A complexidade do sistema tributário nacional gera dúvidas diárias para os contribuintes que pretendem pagar o tributo devido, nem mais nem menos. Muitas dessas dúvidas “básicas” se referem à identificação do tributo devido e da sua base de cálculo, como, por exemplo: há incidência de ISS ou ICMS na industrialização por encomenda? Quais insumos geram direito ao crédito para fins de apuração das contribuições ao PIS/COFINS? O conceito de crédito físico do IPI se aplica ao ICMS?
Essas e outras questões fazem parte do dia a dia de muitas empresas brasileiras. O contribuinte, na busca de uma solução adequada, precisa arcar com custos relevantes com advogados e contadores para o compliance das obrigações tributárias e, mesmo assim, precisa conviver com a incerteza e gastos adicionais referentes a autuações fiscais e litígios judiciais.
Sem prejuízo dos reflexos desastrosos para o ambiente de negócios, a incerteza quanto à incidência tributária fomenta a judicialização dos litígios, seja por parte do fisco, no intuito de arrecadar o tributo supostamente devido e não pago, seja por parte do contribuinte, com o objetivo de anular a autuação fiscal, evitá-la ou mesmo apenas para postergar o pagamento do tributo.
Por sua vez, o excesso de processos judiciais tributários gera morosidade na solução das controvérsias e custos altíssimos para o devido controle e acompanhamento não só para o Judiciário, como também para a Fazenda Pública e para os contribuintes. Fácil perceber que a disputa judicial não é uma boa solução para qualquer das partes envolvidas. Há de se ter outra solução!
Efeito colateral e pernicioso do modelo em vigor no Brasil está na frequente edição dos programas de refinanciamento de dívidas tributárias, comumente denominados “REFIS”. Via de regra, tais programas acabam por gerar desvantagem competitiva ao bom pagador, por garantirem ao mau pagador o recolhimento a posteriori, sem juros ou multa, do tributo devido e não pago.
Evidentemente, se oferecida a alternativa de postergação de pagamento do tributo aos contribuintes, de forma isonômica, quando da ocorrência do fato gerador, todos postergariam o respectivo recolhimento do tributo.
Em outras palavras, a adoção dos programas refinanciamento de dívida acaba por resolver um problema criando outro. Aliás, essa parece ser a especialidade da política tributária brasileira, caracterizada por uma verdadeira colcha de retalhos.
Este círculo vicioso, que surge na incerteza quanto à interpretação da norma tributária e na probabilidade de edição de programas de refinanciamento, atrelado à morosidade da justiça fiscal, tanto na esfera administrativa, como na esfera judicial, acaba por estimular o não pagamento do tributo devido (redução da arrecadação tributária), aumentando, ainda mais, o contencioso tributário, com ônus significativos para todos os envolvidos.
Este não pode ser o nosso normal. Podemos fazer diferente.
Algumas inovações vêm sendo discutidas no contexto da proposta de reforma tributária em trâmite no Congresso Nacional, no Projeto de Lei nº 4.257/2019, que trata da arbitragem em questões tributárias, bem como na recente conversão da Medida Provisória 899/2019 na Lei nº 13.988/2020.
Em especial, a arbitragem se revela como método muito mais célere e especializado para a solução de conflitos tributários, podendo servir como valioso instrumento para romper com o ciclo vicioso que se instalou na realidade fiscal brasileira. Permite a solução de conflitos em tempo razoável, já que os procedimentos arbitrais, em média, têm consumido cerca de 18 meses para que seja prolatada a sentença final. E gera maior segurança jurídica e previsibilidade para as partes envolvidas, tendo em vista que os árbitros, em geral, são especialistas na matéria tributária em discussão.
A implementação da arbitragem tributária, contudo, esbarra em algumas dificuldades.
A primeira complexidade gira em torno do conceito de disponibilidade[3] ou indisponibilidade do tributo, assim entendida como a capacidade ou incapacidade do Poder Público de transigir ou contratar em matéria tributária, observando os preceitos de ordem pública.
Neste ponto, cabe lembrar que o artigo 171 do Código Tributário Nacional (“CTN”) prevê, dentre as possíveis formas de extinção do crédito tributário, o instituto da transação, por meio do qual é conferido às autoridades tributárias e aos contribuintes, mediante lei especifica, o direito de negociar e pactuar sobre dívidas fiscais, desde que observadas certas condições legais. Trata-se de opção dada ao sujeito ativo e passivo da relação tributária de, com base em lei ordinária específica, negociar e transacionar sobre a exigência e pagamento de determinado tributo.
Diversos estados da federação já possuem em seu ordenamento jurídico uma regra geral de transação, por meio da qual estabeleceram o caminho alternativo da transação em matéria tributária, desde que observadas as condições legais previstas nas respectivas leis e no CTN.
Na esfera federal, somente no dia 14 de abril deste ano, a Medida Provisória 899/2019 foi convertida na Lei 13.988/2020, por meio da qual restou prevista a possibilidade de transação para tributos federais, respeitadas as diversas limitações e condições ali previstas, que devem ser objeto de atenção.
Se as partes podem transacionar quanto ao pagamento do tributo, evidentemente podem pactuar que eventual conflito a respeito da exação seja resolvido por arbitragem.
E nem se diga que a arbitragem tributária encontraria óbice no artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê que a concessão de incentivos fiscais deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro da respectiva redução da carga tributária.
Não se pode confundir a sentença arbitral que eventualmente reconheça não ser devido o tributo cobrado pela Fazenda Pública, ou que reconheça eventual excesso na cobrança, com a concessão de benefício fiscal.
A via arbitral é, tão somente, um método de solução de conflitos, tal e qual são os contenciosos administrativo e judicial. O árbitro, na dicção do art. 18 da Lei de Arbitragem “é juiz de fato e de direito” para a causa. E a sentença arbitral é o resultado do exercício da jurisdição. Equipara-se à sentença judicial, para todos os fins de direito, na forma do art. 515, VII, do CPC/2015. Já a concessão de benefício fiscal representa mecanismo de política fiscal e, como tal, deve observar os limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal.
É, todavia, absolutamente recomendável e necessária a edição de lei específica, disciplinando o emprego da arbitragem no campo tributário.
Neste sentido, existe em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.257/2019, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que trata da arbitragem em matéria tributária, ainda que com um escopo bastante limitado.
Por meio do referido Projeto de Lei, pretende-se a alteração da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980), com a inclusão nela dos arts. 16-A a 16-F, de sorte que o executado possa optar pela adoção do juízo arbitral para julgar os embargos de devedor, mediante arbitragem pública, de direito e conduzida por instituição de reconhecida idoneidade, competência e experiência na gestão de procedimentos arbitrais.
O legislador, contudo, pode muito mais. Tem a oportunidade de mudar radicalmente a feição da justiça tributária no Brasil, para melhor. Está mais do que na hora de se reformular o contencioso tributário brasileiro, criando um novo modelo de justiça fiscal, que priorize a solução de conflitos fiscais pela via arbitral. Permaneceria com o Judiciário, circunscrita aos tribunais superiores, apenas a uniformização da interpretação das leis, com caráter vinculante para a jurisdição arbitral, mediante ação direta, reclamação ou medida similar.
Os litígios tributários poderiam ser resolvidos por arbitragem, em instancia única, sem a possibilidade de recurso para o Judiciário. Isso reduziria significativamente o contingente de processos judiciais, tornaria o contencioso fiscal mais célere e racional, reduzindo o chamado “Custo Brasil”, em benefício da sociedade e do próprio Estado.
Inclusive, para dar maior segurança jurídica à implementação do instituto, seria interessante a alteração do CTN, via lei complementar, para prever a sentença arbitral como causa de extinção do crédito tributário, nos termos do seu art. 156.
Os desafios são, sem sombra de dúvida, inúmeros e complexos. É essencial que saibamos extrair desse difícil momento pelo qual estamos passando oportunidades para progredir como nação, garantido soluções jurídicas mais eficazes para o governo e, sobretudo, para a sociedade, sempre com máximo respeito aos princípios constitucionais aplicáveis.
*Fonte:jota.info