A tributação sobre as mulheres, o RE 576.967 e o papel dos tributos diretos
Em 5 de agosto de 2020, foi encerrado em Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do RE 576.967, tema nº 72 da Repercussão Geral. Acompanhado por outros 6 votos, prevaleceu a tese proposta pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso: “É inconstitucional a incidência da contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade”.
Trata-se, até onde se tem notícia, do primeiro precedente vinculante em que se abordou, com fundamento na isonomia em sua dimensão de igualdade de gênero, o papel indutor da tributação. Isso porque a incidência da contribuição previdenciária, a ser paga pelo empregador, sobre o salário-maternidade configurava grave ônus e discriminação à contratação de mulheres com potencial de virarem mães, conforme destacado pelo relator do recurso extraordinário:
“(…) para fins de reflexão, propõe-se colocar no lugar de um gestor de empresa privada que possui duas opções de contratação para a mesma vaga: um homem e uma mulher, ambos com 30 anos de idade e recém-casados com os seus respectivos cônjuges, com currículos exatamente iguais e mesmas notas atribuídas no processo seletivo. Tendo em mente os custos acima e imaginando que ambos os candidatos desejam ter filhos a curto prazo, não é difícil responder à pergunta sobre quem seria selecionado para o emprego.”
Assim, além de ter reconhecido a inconstitucionalidade formal da tributação, o relator fundamentou seu voto na inconstitucionalidade material da incidência da contribuição, ponto de partida do presente artigo. Agora, no entanto, é preciso avançar no debate: para além do julgamento do RE 576.967, qual é o papel que o direito tributário pode assumir em relação ao combate à desigualdade de gênero?
Desde já esclarecemos que a proposta aqui encaminhada pretende induzir uma reflexão que não se limita à discussão sobre a tributação indireta, por IPI e ICMS, que recai sobre artigos usualmente utilizados ou adquiridos por mulheres, como absorventes e fraldas descartáveis. O tema, conhecido como “pink tax”, cujo debate está em fase adiantada em países da Europa, como Inglaterra e Alemanha, é sem sombra de dúvidas de relevância ímpar e, por si só, poderia ser objeto exclusivo de análise.
Nesse momento, porém, as nossas considerações serão restritas às seguintes temáticas: (i) a necessidade de retomada do debate sobre licença parental e a sua relação com o direito tributário; (ii) críticas à insuficiência do Programa Empresa Cidadã para proteção dos direitos das mulheres mães; e (iii) o papel extrafiscal da tributação direta (v.g. imposto de renda contribuições sociais) como mecanismo indutor de comportamentos por parte dos agentes atuantes no mercado a fim de fazer valer os direitos já reconhecidos às mulheres. Destaque-se, nesse ponto, a ausência de debates sobre o tema nos recentes projetos de reforma tributária em trâmite no Legislativo.
Quanto ao primeiro aspecto, no referido recurso extraordinário, o relator reconheceu que a tributação possuía um resultado extrafiscal negativo: o de desestimular a contratação de mulheres, principais beneficiárias do salário-maternidade, base sobre a qual recaía a contribuição, uma vez que são elas que se afastam do ambiente laboral para fruição da licença-maternidade.
Também reconheceu a necessidade de revisão desse padrão social, ao destacar que a função de “cuidadora” tradicionalmente atribuída às mulheres deve dar lugar a uma divisão de tarefas relacionadas à parentalidade, conclamando-se o homem a exercer a paternidade em dimensão análoga ao exercício da maternidade pela mulher.
Nesse contexto, a inserção persistente e crescente das mulheres no mercado de trabalho formal começou a exigir uma postura ativa dos homens nos cuidados da casa e, em especial, das crianças. Os homens das últimas gerações começaram a ocupar um espaço substancialmente diverso do que se via há poucas décadas atrás, pois, em vez de apenas “ajudar” nas tarefas domésticas, eles passam gradativamente a assumir e dividir responsabilidades inerentes ao funcionamento da casa e ao bem-estar da família.
E, aqui, apresentamos a primeira reflexão deste artigo: não há momento melhor do que o atual para o avanço das discussões legislativas acerca da extensão da licença-paternidade.
Tendo sido fundamento do voto condutor do RE 576.967 a afronta à isonomia, uma vez que, na maior parte das situações, é a mulher que goza do salário-maternidade como benefício previdenciário, é possível que, a partir do momento em que ao homem também seja concedido o direito de se ausentar das atividades laborais para exercício da paternidade pelo mesmo período de tempo da licença-maternidade, a situação anti-isonômica desapareça.
Nessa hipótese, outras discussões podem ganhar espaço, como v.g. a habitualidade e a natureza da verba; ambas, porém, de cunho eminentemente técnico-tributário, porquanto sob a perspectiva de gênero não há nada mais igualitário do que a licença comum, independentemente de se tratar de pai ou de mãe.
Esse, inclusive, foi um dos argumentos da Procuradoria da Fazenda Nacional apresentado em sustentação oral na Tribuna do STF no julgamento do recurso, para manter a incidência da tributação sobre o salário-maternidade. Na ocasião, afirmou que:
“(…) em março de 2018, havia trinta e seis projetos de lei tramitando no Congresso para aumentar o período da licença-paternidade.(…) o problema está na ausência da mulher, na sua competência, na sua dedicação, do posto de trabalho. E como é que nós resolvemos isso? Por meio de um aumento da licença-paternidade. Se este Supremo Tribunal Federal tem que avançar, tem que evoluir, que o faça. Mas interferindo no benefício que é conferido aos pais. Vamos avançar para uma licença parental, e não simplesmente para uma licença-maternidade que afasta a mulher do contato no trabalho e, portanto, prejudica as mulheres enormemente.”
Convocamos, então, o Poder Executivo – com destaque para a Procuradoria da Fazenda nacional, que já manifestou apoio à causa – como agente da maior relevância nessa discussão, a dar continuidade à ideia lançada e atuar junto ao Congresso Nacional, a fim de que seja implementada a licença parental, uma vez reconhecida a precariedade do atual modelo previdenciário.
Ainda que outras discussões se coloquem acerca da tributação dos valores percebidos durante a licença parental – o que vai depender, inclusive, de como será configurada essa licença –, teremos um excelente exemplo de como um julgamento do STF em matéria tributária pode instar os outros Poderes a adotarem políticas públicas efetivas no combate à desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Possivelmente, sem a apreciação do tema no RE 576.967, não estaríamos hoje avançando no debate relativo à licença parental, a ponto de merecer menção na Tribuna da Corte.
Este passo à frente, além de necessário, é urgente, na medida em que os atuais incentivos fiscais à reinserção da mulher no mercado de trabalho após a gestação não são suficientes para garantia da saúde do bebê em seus primeiros meses de vida, nem asseguram condições profissionais salutares às mães, além de serem claramente anti-isonômicos. E, aqui, firmes na premissa de contribuir com a discussão para além do RE 576.967 sem nos limitarmos à tributação indireta, direcionamos nossas críticas ao Programa Empresa Cidadã, criado pela Lei nº 11.770/2008.
Nesse sentido, somente podem aderir ao Programa as empresas que forem tributadas pelo imposto de renda no lucro real, que recebem benefício tributário para a extensão da licença-maternidade por mais 60 dias, além dos 120 dias assegurados pela Constituição e pela CLT. Estão excluídas, portanto, empresas tributadas pelo lucro presumido e empresas optantes do Simples Nacional, as quais correspondem, respectivamente e aproximadamente, a 17,6% e 76% do número total de empreendimentos.
Desse modo, apenas a 6,4% das empresas é oferecido incentivo para aumento do tempo de licença-maternidade para as empregadas mães, o que confere um tratamento desigual às empregadas, e a seus filhos, com base única e exclusivamente no regime de apuração do Imposto de Renda da empresa empregadora. Nada mais absurdo.
Desse modo, entendemos que além dos esforços conjuntos relacionados à implementação de uma licença parental minimamente equivalente à licença maternidade, seria possível – e desejável – a utilização da tributação para estimular os empregadores a desenvolverem convênios com creches, onde pais e mães possam deixar seus filhos no retorno às atividades profissionais, bem como a investirem em salas de amamentação, para que à mulher seja possibilitada a retirada de leite para armazenagem durante o seu dia de trabalho.
E tais estímulos seriam mais facilmente recebidos com a utilização de deduções via imposto de renda e benefícios referentes às contribuições sobre folha de pagamentos, considerando que a conduta que se pretende incentivar é a dos empregadores e não a dos consumidores. Ou seja, a tributação da renda pode e deve servir de instrumento para o desenvolvimento de políticas públicas igualitárias em matéria de gênero, já que a relação indução/desestímulo pode ser aferida diretamente e independe de fatores externos.
A nosso ver, tais pontos deveriam estar na ordem do dia dos debates da reforma tributária, especialmente sob o viés do papel da tributação na justiça social e na igualdade de gênero. Além disso, a adoção de medidas que visam estimular a manutenção dos empregos tornou-se indispensável considerando a grave crise econômica que o país atravessa.
Em julho de 2020, quando ainda mantínhamos a maior parte das atividades econômicas paralisadas por conta do isolamento necessário para evitar a propagação da doença Covid-19, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) já registrava perda de 1,2 milhão de vagas com carteira assinada.
No entanto, ocorre que, provavelmente devido à pequena participação de mulheres – seja no Congresso, seja na sociedade civil organizada – na pesquisa, elaboração e discussão dos projetos de reforma, talvez não seja possível ver o avanço das pautas de gênero, considerando que nem o tão debatido “pink tax” ganha espaço nas discussões em nível federal.
Assim, concluímos que a necessidade de abordagem do tema transcende a mera necessidade técnica, uma vez que, na verdade, faltam propriamente políticas públicas efetivas que visem à implementação de mecanismos que permitam o fomento de mais igualdade e justiça no tratamento jurídico dispensado principalmente às mulheres, mas que reflete nos atores da sociedade como um todo.
*Fonte: jota.info
CATARINA BORZINO – Presidente do GDT (Grupo de Debates Tributários). Pós-graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). MBA em Planejamento Tributário Estratégico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
MARIANE ANDRÉIA CARDOSO – Professora de Direito Tributário da PUC/Minas. Mestre em Direito pela UFMG. Presidente do Instituto de Juristas Brasileiras.
NINA PENCAK – Doutoranda e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem. Professora e assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal.
RAQUEL DE ANDRADE VIEIRA ALVES – Doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pós-graduada em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal. Autora do livro Federalismo fiscal brasileiro e as contribuições (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017). Cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem.