O ICMS sobre e-commerce e a responsabilidade tributária dos marketplaces
Todo mundo sabe que ICMS é uma grande confusão. E se a operação for interestadual, então, só piora! As empresas se veem obrigadas a pagar ICMS com regras diferentes, dependendo do estado em que mora o consumidor; os pequenos e médios comerciantes não conseguem acompanhar o ritmo dos grandes, exatamente por causa da complexidade; e isso nos coloca como um dos países com sistema tributário mais complexo do mundo.
Apesar disso, nos últimos anos as vendas interestaduais de mercadoria, para não contribuinte do imposto (B2C) aumentaram muito, devido ao e-commerce. E tem um novo intermediário nessa operação, permitindo essa circulação de bens entre os estados: o marketplace. Será que ele pode ter um papel na simplificação da arrecadação de ICMS? É sobre isso que vamos tratar, passando pela EC 87/2015, pela ADI 5.469, até chegar nos PLPs 32/2021 e 33/2021.
Começando no começo
A incidência de ICMS sobre operações de e-commerce é regida pela Emenda Constitucional 87/2015. Em síntese, esta emenda alterou o art. 155, § 2º, VIII, da Constituição, para repartir as receitas do ICMS entre estado de origem e estado de destino da mercadoria. Até então, nas operações B2C, o ICMS era devido somente no estado de origem (no local da sede do vendedor).
Com o crescimento do comércio eletrônico, o critério de tributação na origem desorganizou o equilíbrio federativo do país. As empresas não precisavam mais abrir lojas lá na cidade do consumidor, simplesmente vendendo on line. Isso concentrou arrecadação nos estados fornecedores de mercadorias. Rapidinho, os estados prejudicados se mobilizaram, e aprovaram a EC 87/2015, levando uma parcela maior da arrecadação de ICMS de volta para o estado de destino.
A partir da emenda constitucional, nas remessas de bens para consumidor final, cabe ao estado de destino o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do estado de origem e a alíquota interestadual (o DIFAL). Nas operações B2B, é o destinatário da mercadoria que recolhe o tributo; e nas B2C, a obrigação tributária perante o estado de destino é do fornecedor, nos exatos termos do art. 155, § 2º, VIII, da Constituição. E aí começam nossos problemas…
A EC 87/2015 foi regulamentada pelo Convênio CONFAZ ICMS 93/2015, que organizava as coisas e explicava como os comerciantes deveriam pagar o ICMS. Só que, em fevereiro de 2021, esse Convênio teve algumas de suas cláusulas declaradas inconstitucionais pelo STF, no julgamento da ADI 5.469. Assim, a partir de 2022, as regras da EC 87/2015 só poderão ser aplicadas se houver lei complementar para dar uniformidade ao tratamento da matéria entre os estados da Federação.
A salvação da pátria
Nervosos com as consequências da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), os estados foram ao Congresso. No Senado, foram propostos dois projetos de lei complementar para tratar da matéria: o PLP 32/2021 sobre a cobrança do DIFAL na circulação de mercadorias submetida à incidência do ICMS; e o PLP 33/2021, que trata do DIFAL na operação submetida ao Simples Nacional.
O PLP 32/2021 altera a Lei Complementar 87/1996. No que interessa ao presente artigo, ele agrega um § 2º ao art. 4º da LC 87/1996, que, na essência, se limita a reproduzir o que já estava disposto na Constituição. Ele também adiciona o inciso V e o § 7º ao art. 11 da LC 87/1996, definindo o local da operação de e-commerce, e estabelecendo que o DIFAL deve ser pago no local de entrega da mercadoria.
No art. 13, o PLP detalha a base de cálculo e a forma de definição das alíquotas incidentes sobre as vendas remotas. Já o PLP 33/2021 se limita a alterar a Lei Complementar 123/2006, para prever a cobrança do DIFAL também das empresas que estão no Simples Nacional.
Em síntese, aprovando-se os projetos de lei complementar, as empresas que efetuam vendas remotas B2C permanecerão com a obrigação de pagar o DIFAL para o estado de destino (um estado em que, muitas vezes, elas sequer têm inscrição estadual). A EC 87/2015, ao dividir a arrecadação entre estado de origem e estado de destino, agregou mais complexidade a um sistema já notoriamente confuso. Especialmente no caso de pequenas e médias empresas, impor a obrigação de arrecadação do DIFAL para o estado de destino pode configurar uma efetiva barreira ao comércio.
Uma nova ideia
A barreira criada pela EC 87/2015 pode ser mitigada, caso o Brasil siga a tendência internacional de responsabilizar os marketplaces pelo pagamento do DIFAL. A OCDE é uma das organizações internacionais que recomenda a responsabilização dos intermediários digitais, especialmente nas vendas B2C. A OCDE vê a responsabilidade tributária dos marketplaces como uma solução para reduzir as barreiras comerciais decorrentes da complexidade de arrecadar impostos no estilo IVA em um cenário internacional, especialmente no caso de fornecimento de bens por pequenos e médios negócios. É a salvação para as nossas ME/EPPs.
Colando na tendência internacional, alguns estados brasileiros já vêm responsabilizando as plataformas de comércio eletrônico. Em geral, eles usam a responsabilidade tributária stricto sensu, prevista no art. 128 do CTN, segundo o qual “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”.
Ou seja, as leis estaduais entendem que os marketplaces têm capacidade de colaboração com o fisco, estando aptos ao cumprimento das normas tributárias. Quase sempre, as plataformas de comércio eletrônico só são responsáveis se deixarem de prestar informações ao fisco, tendo falhado com seu dever de colaboração.
As leis estaduais, ao responsabilizar o intermediário digital pelo pagamento do ICMS, estão na vanguarda do que vem sendo feito de mais moderno na tributação da economia digital. Elas desoneram os pequenos fornecedores de bens da obrigação de pagar o imposto para estados distantes, e atribuem esta incumbência aos grandes marketplaces que atuam no setor.
Mas nem tudo são flores. A falta de uniformidade nacional pode acabar impondo mais entraves do que benefícios ao comércio eletrônico, já que as plataformas se veem com obrigações tributárias distintas, de acordo com o endereço do consumidor final. Se o bem vai para o RJ, devem pagar o ICMS; mas se vai para o RS, não têm nenhuma obrigação nesse sentido.
Por isso, seria interessante prever, no PLP 32/2021, diretrizes para a responsabilidade tributária dos marketplaces. Para tanto, basta mexer no art. 5º da LC 87/1996, segundo o qual a “lei poderá atribuir a terceiros a responsabilidade pelo pagamento do imposto e acréscimos devidos pelo contribuinte ou responsável, quando os atos ou omissões daqueles concorrerem para o não recolhimento do tributo”. Que tal colocar novos parágrafos nesse artigo, definindo as diretrizes a partir das quais os estados passariam a legislar? Algo do tipo:
- o que se entende por marketplace (se toda e qualquer plataforma se enquadra no conceito, ou somente aquelas que também operam como meio de pagamento);
- quais são os atos ou omissões que ensejam a responsabilização (geralmente, a plataforma deve compartilhar com o fisco informações sobre as operações que intermedia, tais como dados do fornecedor, valor da operação e número da nota fiscal eletrônica, e o inadimplemento desta obrigação acessória resulta em sua responsabilização);
- se a plataforma pode, de forma voluntária, assumir a obrigação de pagar o DIFAL, como forma de desonerar as pequenas empresas que utilizam seus serviços, e também evitar eventual responsabilização pelo inadimplemento;
- se a responsabilidade dos marketplaces é solidária ou subsidiária;
- se a responsabilidade ocorre somente nas operações interestaduais, ou também nas vendas internas ao estado; e
- se a responsabilidade se limita às vendas B2C, ou também aos casos de venda para contribuinte do imposto.
O estabelecimento destes parâmetros em lei complementar não é necessário, sob a perspectiva constitucional tributária. O modelo de responsabilização dos marketplaces adotado pelos estados indicados acima tem respaldo no art. 128 do CTN, sendo plenamente constitucional. Mas a previsão em lei complementar certamente evita os infindáveis debates judiciais – longos, chatos e caros – que estão por vir nesta matéria.
Além disso, a lei complementar assegura tratamento uniforme, em todo o território nacional, para operações de um setor que tem abrangência nacional. A uniformidade de tratamento, no caso do comércio eletrônico, é muito boa, pois simplifica as obrigações tributárias de pequenas e médias empresas que efetuam vendas remotas, e ainda dá maior segurança jurídica para as gigantes do e-commerce.