Planejamento tributário e sucessório com ativos financeiros no exterior
Dentro do contexto dos planejamentos financeiros adotados pelas pessoas físicas é comum verificar a alocação de parte desses recursos em ativos no exterior, diante da estratégia de preservar parte do patrimônio em moeda estrangeira. Os investimentos são dos mais variados, como contas bancárias remuneradas, bonds, fundos de investimentos e ações negociadas em bolsas de valores.
O cuidado que merece atenção, e onde recai o foco do presente artigo, diz respeito aos impactos tributários decorrentes da forma como os ativos financeiros são detidos no exterior e eventuais consequências no âmbito do planejamento sucessório, especialmente diante do entendimento recentemente exposto no Acórdão 2402-007.732, proferido em novembro de 2019, pela Quarta Câmara da segunda seção de julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”).
Antes de adentrar nos fatos do referido acórdão, cumpre lembrar que pessoas físicas residentes no Brasil para fins fiscais estão sujeitas à tributação pelo imposto sobre a renda (“IRPF”) em bases universais, ou seja, quaisquer rendimentos auferidos por residentes fiscais, tanto de fontes brasileiras como de fontes estrangeiras, trazidos ou não para o Brasil, como regra geral, estão sujeitos à tributação pelo IRPF no Brasil às alíquotas progressivas de até 27.5%, enquanto os ganhos de capital estão sujeitos à tributação no Brasil à alíquota de 15% a 22,5%.
O recolhimento do IRPF sobre rendimentos auferidos de fonte estrangeira é de responsabilidade exclusiva da pessoa física residente no Brasil, de modo que o imposto sobre os rendimentos sujeitos às alíquotas progressivas devem ser realizados sob a forma de recolhimento mensal obrigatório (carnê-leão), enquanto no caso de ganho de capital a Receita Federal do Brasil (“RFB”) disponibiliza programa eletrônico específico e recolhimento de DARF em código específico. Em ambas as hipóteses, o IRPF deve ser calculado no mês do recebimento e o imposto é devido até o último dia útil do mês subsequente.
Especificamente para os investimentos financeiros no exterior, detidos diretamente pela pessoa física, o crédito de rendimentos decorrentes da aplicação financeira implica na apuração de ganho de capital tributável, desde que o valor creditado seja passível de saque pelo beneficiário, nos termos da Medida Provisória 2.158/2001 e do Ato Declaratório Interpretativo nº 8 de 2003. Ou seja, o crédito de juros nas aplicações financeiras detidas no exterior é o marco temporal para a tributação de tal riqueza no Brasil, independentemente de a pessoa física sacar esse valor ou não.
Além dos impactos tributários, a legislação fiscal brasileira exige que as pessoas físicas residentes no Brasil declarem em sua Declaração de Ajuste Anual (“DAA”) os bens e direitos existentes no Brasil e no exterior, pelos respectivos valores de aquisição, bem como na Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (CBE) ao Banco Central do Brasil.
Com relação ao Acórdão 2402-007.732, de acordo com o relatório do caso, um investidor (pessoa física residente fiscal no Brasil) enviou recursos para o exterior no valor de US$ 621.000,00 (dólares americanos) e efetuou uma aplicação financeira desse valor num fundo de investimento do de uma instituição financeira em Luxemburgo, que lhe rendeu crédito mensal de juros no período analisado, ou seja, de julho a dezembro de 2002.
Ao tomar conhecimento de tal situação, a Fiscalização exigiu a tributação dos rendimentos disponibilizados pelo fundo de investimento, com base no extrato bancário apresentado pelo contribuinte. Em sua defesa, o contribuinte alegou que não efetuou a liquidação ou o resgate da aplicação financeira, de modo que não se poderia falar em ganho de capital sobre o referido investimento pela ausência de disponibilidade jurídica e econômica sobre tais valores.
Nos termos da legislação adiantada acima, a referida turma do CARF entendeu pela tributação dos juros disponibilizados no investimento detido pelo contribuinte, independentemente do saque ou liquidação (ainda que parcial deste investimento).
Neste aspecto, importante destacar que a turma não acolheu o argumento articulado pelo contribuinte sobra falta da disponibilidade jurídica ou econômico sobre os rendimentos para incidência do IR sobre o ganho de capital. No caso, arguiu o contribuinte que não havia que se falar em disponibilidade dos recursos em função dos valores estarem alocados em um fundo, de modo que apenas após a deliberação do fundo pela distribuição dos recursos é que se poderia cogitar da presença da disponibilidade jurídica como fundamento a justificar a incidência do IR sobre os rendimentos.
Refutando tal alegação, sustentou o conselheiro-relator que a partir da prova carreada aos autos que indicava o crédito em favor do contribuinte, de modo que, mesmo que não tivesse havido o saque de tais recursos, cabia ao contribuinte “trazer aos autos a prova de tal situação com a apresentação do contrato de investimento e regulamento do fundo”.
Ou seja, verifica-se que a autuação foi mantida não apenas pela aplicação dos dispositivos legais relativos à tributação de rendimentos auferidos no exterior, mas também pela ausência de prova do contribuinte que pudesse sustentar a alegação de que não teria havido sequer o crédito dos valores em seu favor, o que reforça a necessidade de atenção quanto ao regulamento de fundos e outros elementos quando se pretende aplicar recursos no exterior.
Com efeito, a partir da análise do referido Acórdão verifica-se as pessoas físicas que detém aplicações financeiras diretamente em seu nome devem manter um controle preciso e atento desses investimentos no exterior, já que os rendimentos efetivamente disponibilizados (frise-se, mesmo que não liquidados, sacados ou remetidos ao Brasil) serão tributados pelo imposto de renda sobre o ganho de capital. Neste caso, o custo de aquisição será igual a zero e o valor dos juros convertido para Real, de acordo com a cotação do dólar de compra do dia da disponibilização do rendimento, tributado às alíquotas de 15% a 22.5% a depender do valor do ganho de capital.
Por outro lado, só ocorrerá no momento da liquidação ou resgate (parcial ou total) da aplicação financeira a tributação de eventual ganho de capital decorrente da variação cambial, para os casos em que o investimento tenha sido realizado em moeda estrangeira com rendimentos auferidos originariamente em Reais.
Ou seja, admitindo um cenário hipotético em que o dólar tivesse valorizado entre a data da remessa do investimento e a data da liquidação do investimento no exterior no caso do acórdão acima, o contribuinte também teria de recolher o imposto sobre o ganho de capital decorrente da valorização da moeda.
Os fatores até aqui listados, somados à impossibilidade de compensar ganhos e perdas verificados nas aplicações financeiras no exterior e as eventuais regras de sucessão nas respectivas jurisdições de investimento, são os principais determinantes na decisão de aportar esses investimentos em uma empresa offshore em comparação a um investimento feito diretamente por contribuinte pessoa física. Assim, ao invés de deter diretamente as aplicações financeiras em seu nome, a pessoa física investe no exterior por meio de pessoa jurídica também domiciliada no exterior.
Isso porque, as participações societárias detidas no exterior por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil estão sujeitas ao recolhimento do IRPF apenas nas hipóteses de distribuição de lucros ou dividendos da respectiva empresa, de acordo com o artigo 8º da Lei nº 7.713, de 1988, que estabelece o tratamento aos rendimentos de fontes situadas no exterior recebidos por pessoas físicas.
Diferentemente das pessoas jurídicas, as pessoas físicas residentes no país não possuem a obrigação de tributar os lucros disponibilizados no balanço das sociedades controladas domiciliadas no exterior – as comumente denominadas regras Controled Foreign Company, ou “regras CFC”. Em termos práticos, isso significa que será diferida a tributação dos lucros apurados da sociedade controlada no exterior até que eles sejam efetivamente distribuídos à pessoa física residente fiscal no Brasil, nos termos do art. 8º da Lei 7.713/88 como exposto acima.
Há de se lembrar que em 2013 houve uma tentativa de impor as regras CFC às pessoas físicas residentes fiscais no Brasil, por meio da Medida Provisória 627 de 11 de novembro de 2013, inteiramente revogada, a qual estabelecia para as pessoas físicas, em seu artigo 89 que os lucros decorrentes de participações em sociedades controladas domiciliadas no exterior seriam considerados disponibilizados na data do balanço no qual tiverem sido apurados e estariam sujeitos à tributação do imposto de renda no Brasil caso (i) a controlada estivesse localizada em paraíso fiscal, se beneficiasse de regime fiscal privilegiado ou de regime de sub tributação, ou (ii) a pessoa física residente no Brasil não possuísse os documentos de constituição da entidade estrangeira e suas alterações, registrados em órgãos competentes e de domínio público, que identifiquem os demais sócios.
Muito embora a referida regra tenha sido revogada, existem projetos de lei e propostas legislativas para implementar novamente as regras CFC às pessoas físicas. Não é claro o posicionamento de quando e como essas regras serão aplicáveis (se para todos os tipos de estrutura no exterior ou apenas para sociedades constituídas na forma de pessoas jurídicas).
Outro ponto que merece destaque e que tem sido foco de discussão, especialmente após o contexto da anistia fiscal ocorrida nos anos 2016 e 2017, diz respeito à substância das sociedades offshores e a possibilidade de as autoridades fiscais desconsiderarem a estrutura no exterior para fins fiscais com base nesse critério.
Apesar de a legislação tributária não tratar especificamente sobre o conceito de “substância econômica”, uma possível interpretação de uma holding que desenvolve atividade econômica substantiva seria aquela que possui, na jurisdição de seu domicílio, capacidade operacional compatível para exercer a gestão do grupo econômico, especialmente para tomar decisões relativas à administração de seus ativos e de suas participações societárias.
Fato é que atualmente a grande maioria das pessoas físicas brasileiras investe no exterior por meio das empresas offshores visando, principalmente, o diferimento fiscal dos lucros obtidos nos investimentos detidos pela offshore.
Pois bem, verificada a vantagem tributária conferida pelas offshores, o segundo ponto que deve ser estudado pontualmente e de maneira individualizada é a forma como esses ativos (sejam os próprios investimentos financeiros detidos pela pessoa física ou as quotas das offshores) devem ser transferidos aos herdeiros em vida ou por ocasião da falta do investidor original e, ainda, se essa transferência estará sujeita a tributação no país de destino e/ou no Brasil.
É importante que a pessoa física analise os eventuais impostos sobre a transmissão da propriedade na jurisdição de destino e como será feita essa transmissão, tendo em vista que a competência jurisdicional brasileira para inventariar apenas os ativos localizados no território nacional, assim como pelo fato de o Brasil adotar o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios quando se constata a existência de bens situados no exterior.
A figura do trust aparece, justamente, como um dos possíveis meios de se organizar a sucessão dos bens no exterior, já que ele é um mecanismo muito utilizado para essa finalidade em razão de sua grande flexibilidade para deter e dispor da propriedade, bem como para antecipar a divisão dos bens do indivíduo, podendo servir também como alternativa para o diferimento da tributação sobre rendimentos no exterior a partir de aplicações financeiras, especialmente se os ativos financeiros forem detidos por uma empresa detida diretamente pelo trust, dada às diferentes formas de declaração dessa estrutura para fins fiscais.
As diversas formas atualmente adotadas para constituir um trust têm origem nos princípios anglo-saxões de common law, nos quais uma pessoa, o instituidor (geralmente denominado settlor ou grantor), transfere a propriedade de um bem para outra pessoa, o administrador (geralmente denominado trustee), que detém o título legal da propriedade, para o benefício de um terceiro, o beneficiário.
A partir dessa divisão tradicional dos direitos dentro do trust, o administrador fica responsável pelos encargos legais da propriedade, bem como pelos deveres de geri-la e distribuí-la aos beneficiários nos termos estabelecidos pelo instituidor.
A transferência do bem ao trust é feita por ato declaratório de vontade, que pode ocorrer mediante documento escrito (situação mais comum, na qual o instituidor e o administrador celebram um acordo – Trust Deed), oral ou por testamento.
O instituidor pode designar um terceiro como administrador do trust, o qual pode ser tanto uma pessoa física como uma pessoa jurídica. O fato é que o instituidor deixa de dispor integralmente sobre os ativos no momento em que os transfere ao trust, já que os bens ficaram sob a guarda do administrador.
Neste ponto, cabe a ressalva de que o trust poderá ser revogável ou irrevogável, o que significa dizer que, no primeiro caso, o instituidor pode desfazer o trust e transferir novamente a titularidade dos bens e direitos ao seu patrimônio, ressalvadas eventuais disposições específicas da legislação em que o trust está sediado, enquanto que, no segundo caso, os ativos são definitivamente transferidos ao trust, não havendo cláusula que conceda a opção de desfazer a transferência dos bens ao trust
Contudo, importante lembrar que o trust não é reconhecido pelo ordenamento jurídico pátrio. Quanto aos direitos e deveres decorrentes da relação jurídica formada com a instituição do trust, deverá ser aplicada a lei da jurisdição de constituição do trust, conforme estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Além disso, quando o negócio jurídico decorrente da relação firmada no acordo que instituiu o trust for analisado sob a perspectiva da legislação brasileira, ele deve ser válido nos termos do Código Civil, ou seja, deve ter agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei.
Muito embora o trust não seja reconhecido pela legislação pátria, de maneira inédita a Receita Federal do Brasil analisou o tratamento tributário decorrente das distribuições feitas do trust para residentes fiscais brasileiros na Solução de Consulta COSIT 41/2020.
No caso, analisou-se a situação em que a consulente informou ser a beneficiária de trust com sede nas Bahamas, do qual o marido era o instituidor do trust. Após o falecimento do esposo, a consulente passou a receber distribuições do trust, na condição de beneficiária e herdeira e, diante deste cenário questionou se os valores recebidos do trust, em razão do falecimento de seu esposo, são fatos geradores do IRPF e/ou do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD).
A Receita Federal entendeu primeiramente que (i) por ser tributo de competência estadual, restou ineficaz a análise referente ao ITCMD e (ii) o termo trust pode ter mais de uma acepção e, para fins da análise da Consulta, adotou o conceito do artigo 2º da Convenção de Haia, da qual o Brasil não é signatário.
Ou seja, a RFB adotou o conceito de que o trust é uma relação jurídica criada inter vivos ou após a morte, na qual o outorgante coloca seus bens sob o controle de um curador para o benefício de um beneficiário ou finalidade específica; neste contexto, esclareceu os conceitos de settlor, trustee e beneficiário e trust deed.
No caso a RFB não teve acesso ao conteúdo, finalidade e condições do trust, de modo que a análise tributária se pautou nos valores recebidos pela consulente, na condição de residente no País, o que acabou levando à conclusão de que a situação se enquadraria na regra do art. 8º, Lei 7.713/88, ou seja, que as distribuições feitas pelo trust se caracterizam como fato gerador do imposto de renda, sujeito ao recolhimento mensal (por carnê-leão) sob à alíquota progressiva mensal (até 27,5%).
Muito embora, como regra geral, exista a tributação sob a forma de recolhimento mensal (carnê-leão) das distribuições feitas por fontes no exterior a residentes fiscais brasileiros, a Solução de Consulta deixou de analisar a possível aplicação da isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física sobre os valores recebidos a título de herança, nos termos do Art. 6º, XVI, da Lei nº 7.713/88, sobre os bens contribuídos ao trust, nem considerou, entre outros fatores, os reais instrumentos de instituição das estruturas no exterior e a forma de contribuição e segregação dos ativos em cada caso.
Diante de todo exposto, é importante que ao investir no exterior a pessoa física tenha suporte jurídico em ambas as jurisdições (no Brasil e no exterior) sobre os eventuais impactos tributários decorrentes do investimento em aplicações financeiras, os eventuais impostos sobre a transmissão da propriedade na jurisdição de destino e como será feita essa transmissão desses bens aos seus herdeiros.
*Fonte: jota.info
THALES STUCKY – Advogado.
FLAVIA ALLEGRO GEROLA – Advogada. Mestra em Direito Tributário (LL.M) pela Northwestern University, graduada e pós-graduada pela PUC/SP.