RIO – As famílias brasileiras não atravessam sozinhas os reveses da crise. Em um contexto de consumo enfraquecido, juros no maior nível em dez anos e cotação recorde do dólar, o endividamento das empresas também deu um salto, preocupando investidores e dificultando a retomada do crescimento. Segundo levantamento realizado pelo GLOBO com base em informações agregadas pela Bloomberg, a dívida líquida de 50 empresas que compõem o Ibovespa, principal índice da Bolsa, saltou 77% em dois anos. O aumento foi de R$ 366,5 bilhões, mais que o triplo do Orçamento do governo federal para a área da saúde este ano. Com as finanças apertadas, as companhias demitem, tentam vender ativos e reduzem o investimento. Enquanto isso, negociam com bancos e credores novas condições de financiamento.
PETRÓLEO E MINERAÇÃO, OS MAIS AFETADOS
O levantamento considerou a evolução da dívida líquida — a dívida total menos o caixa (dinheiro ou investimentos) — entre o terceiro trimestre de 2013 e o mesmo período de 2015. Foram excluídas companhias ligadas ao setor bancário (bancos e firmas correlatas) e a Rumo, que, por ter sido formada em 2014, não tem dados de endividamento para 2013. Os dados constam dos balanços patrimoniais padrão compilados pela Bloomberg.
A dívida das 50 empresas somou R$ 842,6 bilhões em setembro. Sozinha, a Petrobras responde por 48% do total (R$ 402 bilhões), após salto de 109% em seus débitos nos dois anos. A corda não aperta apenas o pescoço da estatal: 37 empresas viram sua dívida aumentar; em 25 delas, o aumento foi de pelo menos R$ 1 bilhão.
Em muitos casos também cresceu a alavancagem — relação entre dívida e a geração de caixa nos últimos 12 meses. Quanto maior a relação, pior a capacidade de quitar os débitos. Na CSN, essa relação saltou de já preocupantes 5,5 para 11,5. Ou seja, com o caixa que gera, a siderúrgica levaria mais de 11 anos para quitar seus débitos. Sua dívida saltou 31% em dois anos, para R$ 26 bilhões. Este mês, segundo o sindicato local, a CSN demitiu 700 funcionários em Volta Redonda (Sul Fluminense) e vai suspender por 90 dias um alto-forno da usina.
Na Petrobras, a alavancagem foi de 3,3 para 5,3, segundo a Bloomberg. Analistas consideram saudável para a empresa uma relação de 2,5. Afetada pela queda de 55% do petróleo nesses dois anos e por um escândalo de corrupção que levou a baixas contábeis bilionárias em seus balanços, a estatal reduziu em US$ 32 bilhões seu plano de investimento até 2019, pretende vender US$ 14,4 bilhões em ativos até o fim do ano e estuda uma redução de 30% dos cargos gerenciais.
Segundo Marianna Waltz, diretora-gerente da Moody’s, parte relevante do aumento da dívida está relacionada à depreciação do real. Relatório do Credit Suisse de outubro estimou em 34% a fatia da dívida em moeda estrangeira. Excluindo-se a Petrobras, a taxa cai para 20%.
A agência de risco observou nos últimos dois anos uma piora na liquidez das empresas, que significa a capacidade de quitar a dívida de curto prazo. Mas não é esse o fator de preocupação, já que Marianna admite que o nível ainda é adequado. O ruim é o que vem pela frente:
— A tendência é muito preocupante. Um fator é a desaceleração da China, que mantém as commodities em valores baixos. Há uma aversão global a risco, enquanto o mercado de capitais e o bancário estão mais restritos. No limite, a situação pode levar a falências, recuperação judicial e calotes.
Para Ricardo Paes, do banco Modal, os juros também foram determinantes:
— Muitas empresas se endividaram quando as taxas estavam baixas, havia crescimento e pouca dívida. O problema é que, agora, esse estoque cresceu com um custo muito elevado. Já há empresas sem capacidade de pagar não apenas o principal da dívida, mas também os juros.
MULTISSETORES
A tendência é multissetorial, mas Marianna cita como segmentos mais afetados os diretamente ligados a produtos básicos (petrolífero, minerador e siderúrgico) e a construção civil. Segundo a analista, o setor de celulose é favorecido pela desvalorização cambial e pela estabilidade do preço do produto. Outra exceção seriam os frigoríficos, como JBS e Marfrig, que conseguem compensar a queda da receita local com o acesso a outros mercados.
No estudo de outubro, o Credit Suisse apontou quatro setores com dívida ao menos quatro vezes acima da geração de caixa. A mineração apareceu na frente (alavancagem de 4,6), seguida por transportes (4,1), veículos (4) e óleo e gás (4).
A situação levou a uma onda de rebaixamentos pela Moody’s. Entre 60 companhias, 50 sofreram ações negativas em 2015, que podem ser downgrades ou piora de perspectiva. Mais de um terço das empresas analisadas pela agência chegaram a 2016 com perspectiva negativa.
— As firmas estão com menos dinheiro para investir ou pagar dividendos. Assim, viram-se com duas opções: ou consumir seu caixa ou emitir dívida — disse Mauro Storino, diretor sênior da agência Fitch.
Segundo ele, há uma maior dificuldade para “rolar” a dívida crescente. Storino diz que a onda de rebaixamentos fez com que o mercado internacional de crédito se tornasse “praticamente inexistente” para as firmas nacionais. E o mercado de debêntures (títulos de dívida) se encontra restrito, enquanto o crédito bancário está muito mais seletivo:
— Várias empresas estão partindo para a solicitação de waiver (perdão) a credores por causa da violação de cláusulas de títulos. O pior é que 2016 não vai ser nada maravilhoso para as companhias.
Usiminas e Light são exemplos de firmas que solicitaram waiver a credores por razões como a alta da alavancagem.
O endividamento maior não é exclusividade das empresas brasileiras. Ocorreu em vários países emergentes, afetados pelo fim do ciclo das commodities. Em outubro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) calculou que a dívida corporativa dos emergentes (excluindo-se o setor financeiro) saltou de US$ 4 trilhões para US$ 18 trilhões. E alertou que o rápido crescimento da alavancagem já causou crises em emergentes no passado. Mas o Brasil é um dos que mais preocupam. Segundo o FMI, o crescimento dessa dívida como proporção do PIB no país foi o quarto maior entre 20 emergentes. A Fitch calcula que a dívida corporativa brasileira fechou 2014 representando 67,4% da economia, a maior entre sete emergentes e mais que o dobro da mexicana (33,2%).
Bancos: renegociam e vendem carteiras
Se quando a dívida é grande o problema é mais do banco que do devedor, como diz a máxima, as instituições financeiras não ficaram paradas diante do salto do endividamento. O problema está levando a aperto na concessão de crédito, elevação das provisões contra calotes, maior disposição para renegociações de dívida e, em último caso, venda de carteiras de crédito para as quais não restam esperanças. Em relatório recente, a Moody’s Investors Service estimou que os bancos são a segunda maior fonte de crédito corporativo no país, com fatia de 25%, só atrás do mercado de dívida (39%).
— Os bancos estão renegociando dívida, aumentando provisões e, às vezes, tendo perda. O montante ainda não é substancial, mas já é um indicativo ruim. A Caixa, por exemplo, está vendendo um volume grande de crédito ruim para empresas de recuperação de crédito — observou Luis Miguel Santacreu, analista da Austing Rating responsável pelo setor bancário. — Os bancos estão mais seletivos. As carteiras de crédito não vão crescer este ano.
JUROS MAIORES PARA COMPENSAR
Dados compilados por Santacreu mostram que as despesas de provisões em dez grandes bancos saltaram 46,2% em um ano, para R$ 69,8 bilhões.
Mesmo assim, foi inevitável o aumento da exposição das carteiras de crédito dos principais bancos ao segmento de óleo e gás, por exemplo. Segundo o relatório da Moody’s, o Bradesco aumentou sua exposição em 70% em um ano, para 3% de sua carteira de crédito. O BNDES, estatal, é o banco com maior exposição, com 6%, segundo as contas da Moody’s. No Itaú Unibanco, o crescimento da exposição foi acima de 30%, mas continua na casa de 1% da carteira.
Segundo a agência, a exposição média dos bancos brasileiros ao setor fica entre 1% e 3%, números que, apesar de baixos, estão entre as maiores concentrações em um único setor no portfólio das instituições.
Para compensar o aumento do risco, os bancos elevaram os juros dos empréstimos corporativos. Pelas contas da Moody’s, as taxas anuais médias subiram, em um ano, de 16% para 20%, em setembro.
Em nota, o BNDES afirmou que sua exposição ao setor de óleo e gás cresceu 23% entre junho de 2014 e o mesmo mês de 2015, mas observou que “o patamar detectado pelo BNDES é inferior ao aferido pelo relatório” da Moody’s. O banco não informou, porém, qual grau de exposição identificou. “O aumento se deu, majoritariamente, em função de correções em saldos devedores de financiamentos, resultantes em grande parte da variação cambial. O BNDES considera que a elevação da exposição ao setor é compatível com seu papel de banco de desenvolvimento”, acrescentou.
A Caixa afirmou, em nota, que “possui processos consistentes para mensuração e monitoramento dos índices de concentração da carteira de crédito (…) de acordo com as regulamentações vigentes.” Bradesco e Itaú Unibanco não quiseram comentar a situação. O BB não respondeu até o fechamento desta edição.
Fonte: O Globo