CBS e responsabilidade tributária das plataformas digitais
Consta do já bastante divulgado e criticado Projeto de Lei nº 3887/2020, que cria a CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços) como uma das etapas da reforma tributária proposta pelo Governo Federal, previsões de hipóteses de responsabilidade tributária para plataformas digitais.
De acordo com o artigo 6º do texto apresentado à Câmara dos Deputados, plataformas digitais são aquelas pessoas jurídicas que realizam a intermediação de operações de vendas de bens e serviços de forma não presencial, incluindo e-commerce via marketplaces.
O parágrafo único do dispositivo excetua da caracterização aquelas pessoas jurídicas que apenas forneçam o acesso à internet, ou apenas processem pagamentos ou, ainda, apenas realizem a procura por fornecedores sem exigir, por isso, comissão sobre as vendas.
O projeto, claramente, busca alinhamento ao relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que trata do papel das plataformas digitais na arrecadação de tributos sobre consumo nas vendas online (The role of digital platforms in the collection of VAT/GST on online sales), que deriva das diretrizes da Action 1 do projeto anti-BEPS (Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy).
Referido relatório define plataformas digitais como aquelas empresas que permitem, por meios eletrônicos, interações diretas entre compradores e vendedores, sendo que estes últimos são, ambos e de alguma maneira, clientes das plataformas.
Há, no projeto, evidente preocupação com a potencial perda de oportunidades de arrecadação de tributos que a digitalização da economia apresenta, especialmente nas relações entre empresas e consumidores (B2C) de modo não presencial.
O alinhamento às diretrizes da OCDE está, inclusive, expresso na exposição de motivos do projeto em questão, sendo que a Action 1 do projeto anti-BEPS é especificamente mencionada como razão para a adequação do sistema de tributação do consumo para a economia digital e, consequentemente, para a atribuição dos modos de responsabilização tributária às plataformas digitais domiciliadas no exterior.
As plataformas digitais estão em uma posição privilegiada, como intermediadoras das operações de compra e venda de bens e serviços por meios eletrônicos, em termos de capacidade colaborativa em matéria tributária. Possuem, em razão dos serviços que prestam, proximidade com aqueles que realizarão a materialidade da norma da CBS, com acesso a dados relevantes de interesse da arrecadação e da fiscalização dos tributos (artigo 113, §2, do Código Tributário Nacional – CTN).
O projeto de lei pretende, dessa forma, fazer pesar, sobre as plataformas digitais, deveres de colaboração com a administração tributária federal, escolhendo, como modalidade de relação tributária que delas exija garantir o cumprimento da obrigação de pagamento da CBS pelos reais contribuintes, a técnica de imposição de hipóteses de responsabilidade tributária.
A primeira hipótese de responsabilidade tributária vem prescrita no artigo 5º, que impõe aos intermediários a obrigação de pagamento da CBS devida por aquela pessoa jurídica vendedora que, utilizando-se da intermediação das plataformas digitais, deixar de registrar a operação mediante a emissão de documento fiscal.
Trata-se, no caso, de imposição de obrigação de pagamento exclusivamente às plataformas digitais diante do descumprimento de um dever instrumental pela pessoa jurídica vendedora de um bem ou serviço. Não há previsão de “responsabilidade” supletiva do contribuinte pelo pagamento do tributo, nos termos do artigo 128, do CTN.
A segunda, consta do inciso V, do artigo 65, e se refere aos casos de incidência da CBS na importação de bens. Trata-se de responsabilidade solidária que impõe às plataformas digitais estabelecidas no exterior a obrigação de pagamento do tributo incidente sobre as operações de importação realizadas com sua intermediação.
Essa “solidariedade”, é importante que se diga, não se dá por “interesse comum”, na dicção do artigo 124 do CTN, já que não há, em sentido técnico-jurídico, interesse das plataformas na situação que configura o fato jurídico tributário da CBS das vendedoras, restando, por isso, a prescrição do já mencionado artigo 128 do CTN também sobre essa hipótese de responsabilidade tributária.
Por fim, a terceira hipótese constante do Projeto de Lei nº 3887/2020 vem prevista no artigo 72 e se refere aos casos de importação de serviços. Diversamente da responsabilização pelo pagamento da CBS na importação de bens, o artigo 72 não menciona se tratar de responsabilidade solidária, dizendo, apenas, em seu inciso II, que as plataformas digitais domiciliadas no exterior deverão pagar a contribuição incidente nas operações de importação de serviços realizadas com sua intermediação.
Novamente, uma obrigação exclusiva das plataformas digitais (conforme artigo 128, do CTN), uma que vez que inexiste previsão de supletividade da obrigação de pagamento para o contribuinte.
Interessante notar que a única hipótese de responsabilidade tributária constante do projeto aplicável às plataformas digitais domiciliadas no Brasil é aquela decorrente da falta de emissão de documento fiscal pela empresa vendedora do bem ou do serviço por meios eletrônicos.
Já para as plataformas domiciliadas no exterior, restam dúvidas sobre se a presença digital relevante dessas empresas em território nacional poderia justificar o primeiro tipo de responsabilidade tributária também a elas.
O artigo 128 do CTN de fato permite que, para além das hipóteses de responsabilidade tributária já previstas no Código, se exija o pagamento do tributo de alguém que não praticou pessoalmente a materialidade da norma de incidência, mas que possua vínculo com o “fato gerador” da obrigação tributária.
E assim o faz para evitar que padeça, a exigência tributária, de inconstitucionalidade por afronta à capacidade contributiva e à vedação de efeitos confiscatórios, ao pesar sobre patrimônio de alguém que nada tem a ver com a materialidade e que não apresenta a necessária manifestação de riqueza.
O dispositivo legal, portanto, está a serviço da proteção de princípios constitucionais, e afrontá-lo de modo a fazer atingir a incidência tributária, patrimônio de quem não possua vinculação com o fato jurídico tributário, significaria afrontar a própria Constituição Federal.
A pressuposição de que as plataformas digitais possuiriam essa vinculação com a prática da materialidade necessária à incidência da CBS deve ser vista com cuidado.
Plataformas digitais atuam de maneiras diversas, heterogêneas, não uniformes. Podem se limitar, por exemplo, a aproximar fornecedores de compradores, cobrando comissão para tanto, ou somar a isso as funções de processamento de pagamentos, de publicidade dos produtos e da marca dos fornecedores clientes, entre outras atuações avençadas em contrato.
Nem todas as plataformas digitais poderão ser consideradas como vinculadas ao “fato gerador”, especialmente nos casos em que a atuação prevista em contrato não envolva processamento de pagamentos ou assessoria em emissões de documentos fiscais para os vendedores. Nesses casos, para boa parte das plataformas digitais, seria inviável buscar posterior ressarcimento daqueles que realizaram a materialidade da hipótese de incidência da CBS.
Isso significa que, do modo como vêm previstas as hipóteses de responsabilização tributária das plataformas digitais pela CBS de outrem, sem levar em consideração os diferentes modos de atuação de cada tipo de plataforma digital, não apenas há chance de encarecimento dos serviços prestados por essas empresas, desestimulando, indiretamente, a digitalização da economia, mas, também, há um enorme potencial de afronta ao artigo 128, do CTN, e consequentemente, à própria Constituição Federal.
Da forma como pensamos, a técnica mais adequada a ser utilizada para se aproveitar da destacada capacidade colaborativa em matéria tributária das plataformas digitais não seria a de atribuição de responsabilidades tributárias a esses importantes atores da irrefreável digitalização da economia, mas, sim, a da atribuição de deveres instrumentais tributários (“obrigações acessórias”), como, por exemplo, os de retenção na fonte, desde que instituídos por lei e respeitados os princípios da proporcionalidade, coerência sistêmica, praticabilidade, segurança jurídica, isonomia e as exigências do CTN quanto à relevância tributária, evitando-se, assim, aumento não razoável de custos de conformidade para esses administrados.
Esse tipo de dever instrumental somente incidiria, no exemplo, para aquelas plataformas digitais que assessoram os pagamentos e as emissões de documentos fiscais em favor dos vendedores, evitando, assim, repasses no preço do serviço e conformidade tributária demasiadamente complexa, já que atuariam como fontes pagadoras.
Buscar alinhamento aos relatórios da OCDE sobre liability de plataformas digitais para a arrecadação de tributos sobre consumo é positivo. Mas o termo liability não precisa, necessariamente, ser automaticamente utilizado no Brasil como sinônimo de responsabilidade tributária, já que nosso sistema caracteriza esse instituto de maneira bastante peculiar, sendo preferível, na hipótese específica tratada neste texto, uma “responsabilização” de plataformas digitais através de deveres instrumentais.
*Fonte: jota.info
HENRIQUE MELLO – Doutor pela USP; mestre pela Università degli Studi di Genova; juiz do TIT/SP; professor de Direito Tributário/advogado tributarista.