ISS e economia digitalizada: a ‘bola da vez’
Sob a perspectiva brasileira, o Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza, ou simplesmente ISS, sempre foi um tributo envolvido em controvérsias. Da pretensa taxatividade da lista de serviços historicamente contida na legislação até a localização do estabelecimento prestador, o ISS vem sendo objeto de inúmeras discussões por parte dos contribuintes ao longo das últimas décadas.
Longe do glamour do imposto sobre a renda e contribuição social sobre o lucro líquido e da complexidade do imposto sobre circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de serviços de transposta intermunicipal e de comunicação (ICMS), o ISS vinha tendo uma atuação relativamente discreta até o desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação, coloquialmente chamada de economia digitalizada.
Sob o ponto de vista histórico, o comércio era, e para alguns ainda é, conduzido por uma variedade de trocas de bens corpóreos. Estratégias de negócios eram definidas em reuniões presenciais, informações eram frequentemente retratadas em relatórios físicos e bens e serviços eram entregues aos consumidores ou adquiridos de fornecedores de modo presencial. Pagamentos eram realizados via cheque, mediante a entrega de dinheiro e, eventualmente, por meio de trocas.
Isto é, todas essas transações mencionadas envolviam algum tipo de troca física, o que promovia o ICMS em detrimento do ISS, que alcançava precipuamente itens contidos em uma lista de serviços editada em 1968 e retrofitada em 2003, 2016 e 2020.
O avanço tecnológico possibilitou, sobretudo, uma redução dos custos na venda de mercadorias e serviços, garantindo não só uma escala muito superior em comparação aos volumes até então praticados, como uma expansão do alcance de mercado dos consumidores e fornecedores, que deixaram de ser regionais e passaram a ser globais.
A digitalização é, portanto, um processo transformativo impulsionado pelas inovações tecnológicas que afetam a cada dia todos os aspectos de nossas vidas, assim como a organização e funcionamento da economia e da sociedade. O alcance e a velocidade das mudanças são massivos, trazendo com elas a sua quota de disrupção e incertezas.
A acentuada incorporação da tecnologia da informação e comunicação propiciou o florescimento e a profusão de novas atividades — produtos e serviços — tanto nos setores públicos quanto nas áreas privadas. Tais tecnologias não apenas alavancaram a eficiência e o campo de atuação das companhias por elas beneficiadas, mas também transformaram os meios pelos quais os produtos e serviços por elas comercializados são produzidos e entregues, redesenhando o modelo de negócio até então adotado por multinacionais e startups.
Típico exemplo das mudanças proporcionadas pelo desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação pode ser observado nas impressões tridimensionais, atividade bastante comum nos dias atuais. Com o avanço da digitalização da economia, ao invés de se vender um vaso de plantas pelos meios tradicionalmente conhecidos, é possível que um dado consumidor faça o download do projeto feito sob medida e “materialize” o vaso em sua própria impressora. Isso sem a necessidade de ir a uma loja específica, de forma rápida, dinâmica e virtual.
A consequência fiscal de tal mudança na relação entre fornecedores e consumidores, bem como nas atividades e modelo de negócios tradicionalmente adotados pelos grupos corporativos deságua, em grande parte, no ISS, cuja tendência é aumentar o seu campo de incidência, ainda que por meios das famigeradas listas de serviços e ainda que abranja atividades complexas ou híbridas e que não se resumem a uma mera obrigação de fazer.
Tradicionalmente o Supremo Tribunal Federal adotava a conceituação trazida pelo Código Civil para fins da caracterização da prestação de serviço, isto é, sendo verificada a existência de uma obrigação de fazer, restava caracterizada a prestação de serviço, o que levaria, consequentemente, à incidência do ISS.
Após um longo período decidindo pela incidência do ISS de acordo com a dicotomia obrigação de dar versus obrigação de fazer, o Supremo Tribunal Federal passou a incorporar novas referências para a prestação de serviço.
Ao julgar o Recurso Extraordinário nº 592.905, que abordava os contratos de leasing financeiro, aquela corte começou a dar os primeiros sinais de que a obrigação de fazer não seria mais o principal critério para verificar a incidência do ISS. A partir daquele momento, o STF passou a inserir o entendimento de que a lei complementar do ISS não continha a definição de serviço e que o seu limite de aplicação estaria apenas no artigo 156, inciso III, da Constituição Federal.
A “evolução” do entendimento do STF pode ser confirmada pelos julgamentos ocorridos em 2020, por meio dos quais o Plenário dessa corte passou a adotar uma interpretação mais ampla do conceito de serviço, não se limitando à distinção clássica entre obrigações de dar e fazer, mas abrangendo toda e qualquer “inegável aplicação de esforço humano destinado a gerar utilidade em favor de outrem” e “atividade (…) prestada com finalidade econômica”.
Ou seja, ao adotar um conceito de serviço que não se resume à acepção trazida pelo Código Civil — obrigação de fazer —, e ressalvando qualquer análise crítica sobre o entendimento do STF, é certo que novas atividades, mormente aquelas imateriais, dinâmicas e dotadas de complexidades, surgidas ou modificadas por força da digitalização da economia, passaram a ser elegíveis à tributação pelo ISS, desde que, é claro, atendidos os requisitos e formalidades legais.
Essa questão, tributação de atividades complexas, em que há o envolvimento de contratos híbridos, isto é, contratos que possuem mais de uma operação em seu bojo, já vem sendo analisado pelo STF. Embora sem uma definição final sobre o tema, ao analisar a situação das franquias (RE nº 603.136), típica hipótese de um contrato complexivo, o STF rejeitou a possibilidade de fracionamento do contrato, tendo como resultado prático a possibilidade de cobrança do ISS sobre os “serviços” de franquia.
Além de ser um dos planos de ação do projeto BEPS da OCDE e um dos tópicos mais comentados dentro do mundo tributário, não se pode negar que a digitalização da economia já mudou as atividades corporativas e as relações de consumo então conhecidas, tendo reflexos fiscais, como no IRPJ e, sem sombra de dúvidas, também no ISS.
Dessa forma, o desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação propiciou o surgimento da economia digitalizada, transformando completamente setores tradicionais da economia, bem como possibilitando o surgimento de formatos inusitados de negócios, dotados de características próprias. Entre tais características, destaca-se a intersecção de negócios que, muitas vezes, complementam-se ou até mesmo sobrepõem-se uns aos outros .
É exatamente nesses formatos inusitados e na intersecção de negócios proporcionados pela digitalização da economia, cujo resultado é a formação de atividades híbridas ou complexas, que entra em cena o ISS, o qual surgiria como uma espécie de tributos residual ao ICMS, propiciando o incremento da base arrecadatória dos municípios. Isso, é claro, desde que observadas as disposições constitucionais e legais aplicáveis (e.g., inclusão na lista de serviços e/ou a possibilidade de interpretação horizontal, não invada a competência de outros entes de federação etc.).
Em suma, a digitalização da economia alterou o modelo econômico e a forma com que os negócios são realizados. Se mantida a tendência do STF de alargamento do conceito de serviços, tal como verificado nos últimos julgamentos sobre a matéria, talvez o ISS seja a “bala de prata” utilizada pelo legislador para tributar as atividades decorrentes deste novo modelo econômico. Em tempos de digitalização da economia, o ISS tem tudo para ser “a bola da vez”.
*Fonte: conjur.com.br
Diogo de Andrade Figueiredo é doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito Tributário Internacional pela University of Florida.
Sarah Rodrigues da Cunha Oliveira é advogada .