Uma proposta de lógica setorial para reforma tributária: créditos sobre mão-de-obra
Se pudéssemos dar um reset no sistema tributário brasileiro e começássemos do zero, a “primeira fase” da reforma tributária proposta pelo Governo Federal contribuiria muito para a definição de bases sólidas, transparentes e simples para a tributação sobre o consumo.
Porém, passadas três décadas do atual sistema constitucional e cinquenta anos do Código Tributário Nacional, a construção histórica da nossa matriz tributária é um constante exercício sobre o interesse arrecadatório, a eficiência administrativa e os fatores econômicos envolvidos em prol da justiça fiscal e do desenvolvimento social.
O Projeto de Lei 3.887/20, que institui a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS) e altera a legislação tributária federal, com a pretensão de unificar o PIS e a Cofins, extingue os atuais regimes opcionais de cumulatividade e não-cumulatividade.
Aquele sujeita-se à alíquota somada de 3.65% incidente sobre a receita bruta, sem grandes deduções, enquanto esse último, com alíquota final de 9.25%, permite a apropriação de uma variedade de créditos prevista pela legislação competente (i.e. custo de mercadoria para revenda, insumos, energia elétrica, aluguéis, fretes etc.).
A não-cumulatividade é a base dos tributos conhecidos por incidir apenas sobre o valor agregado em cada etapa de circulação, de modo a não onerar o preço final, evitando a incidência em cascata. O tributo não-cumulativo permite que, na etapa subsequente do processo produtivo ou de comercialização, não ocorra recolhimento sobre o valor pago na etapa anterior.
Com a criação da CBS, como regra, todas as empresas estarão vinculadas ao regime não-cumulativo, com alíquota de 12% incidente sobre o valor da receita bruta auferida em cada operação, com a permissão de apropriação dos créditos correspondentes ao valor do referido tributo relativo à aquisição de bens ou serviços, destacado em documento fiscal.
É certo, e não se pode desconsiderar, que a sistemática da CBS com cálculo do tributo “por fora”, apresenta um avanço significativo, haja vista acabar com um anacronismo da legislação tributária brasileira que admite tributo na base de cálculo de outros tributos, e, por incrível que pareça, na composição dele mesmo, como acontece na controvertida inclusão do ICMS ou do ISS nas apurações do PIS e da Cofins, e, como dito, dos próprios PIS e Cofins em suas bases de cálculo.
Outro relevante progresso da CBS é a tentativa de solucionar uma discussão antiga sobre a extensão conceitual de insumos para fins de aproveitamento de créditos no âmbito do PIS e da Cofins não-cumulativos, que, mesmo com o leading case proferido no Recurso Especial Repetitivo nº 1.221.170 (DJe 24/4/2018), de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, manteve-se ainda acesa a litigiosidade nas instâncias inferiores e no contencioso administrativo fiscal.
Este cenário persiste porque o critério a ser utilizado “deve ser aferido à luz da essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de terminado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”. E, diante dos óbices ou exegeses restritivas da Receita Federal do Brasil acerca do que é ou não é essencial, conserva-se a corrida ao Judiciário para assegurar o insumo como indispensável no processo produtivo.
O enfrentamento da macrolitigância tributária, inegavelmente, oferta ao sistema tributário brasileiro sobre o consumo notáveis avanços. Entretanto, a proposição exige reflexões sobre o conjunto dos seus efeitos e, na prática, por constatação óbvia que dispensa grandes incursões estatísticas ou de dados econômicos, o setor de serviços sofrerá forte impacto tributário, com subsetores sendo atingidos pelo aumento da carga tributária em quase 300% (trezentos por cento), apenas se considerada a extinção do PIS e da Cofins pela sistemática da CBS.
Isso se deve ao fato de que o setor de serviços, na imensa maioria, está sujeito ao atual regime cumulativo (alíquota de 3.65%) e não adota o regime não-cumulativo com apropriação de crédito porque seu custo operacional e seus fatores de produção concentram despesas com mão-de-obra e não com insumos materiais.
O principal, mais relevante e essencial “insumo” do setor de serviços é o fator pessoal, decorrente da intervenção do trabalho técnico, operacional ou intelectual do ser humano. Na mediana das empresas prestadoras de serviços, as despesas com aqueles que realizam os serviços prestados alcançam de 50% a 60% dos custos incorridos. Embora expressivo, esse custo não está na órbita do creditamento proposto pela CBS.
Mais uma vez, exige-se a conjugação dos fatores determinantes da tributação, de modo que não se permita que, em nome de determinado avanço, o setor de serviços, timoneiro da economia brasileira e responsável por grande parte do consumo das famílias, inclusive de baixa renda, seja submetido a um dilúvio impetuoso e sem volta.
A constatação é simples. Ao onerar a tributação sobre os serviços, a tendência é haver repasse de preços ao consumidor final. Atividades como restaurantes, salões de cabeleireiro, escolas, serviços médicos e profissionais liberais, todos já bastante castigados pela Covid-19 e “na ponta” do consumo, não subsistirão com a transferência de custos. O adquirente, em tais negócios, costuma ser o último da cadeia, não cabendo falar em creditamento. Não há margem de expansão da renda das famílias médias brasileiras e nem muito menos espaço para elasticidade da demanda. O desfecho é um só: subsetores de serviços serão varridos do mapa.
Mesmo dentro de uma parcela da economia significativamente heterogênea, quase todo o setor de serviços está sujeito à tributação do PIS e da Cofins de forma cumulativa com alíquota fixa de 3.65% (somadas) sobre a receita bruta, seja por adotarem o lucro presumido, seja por terem sido excepcionados da não-cumulatividade pela legislação competente, entre eles telecomunicações; serviços de saúde, hospitalares e de medicina diagnóstica; pronto-socorro e clínica médica; companhias áreas; construção civil; telemarketing; hotelaria; jornais e tecnologia da informação. Outro ponto em comum é que o pouco insumo consumido no processo produtivo advém, majoritariamente, de empresas sujeitas ao SIMPLES, importando, na sistemática da CBS, não apropriação do crédito integralmente.
Difícil imaginar que o castigo de uma reforma tributária vem para o setor de serviços, que responde atualmente por cerca de 68% do Produto Interno Bruto (PIB) e por mais de 70% dos empregos formais do país. Além disso, é a atividade econômica que mais recebeu investimentos estrangeiros diretos: em torno de 45% das aplicações externas no setor produtivo.
Esses dados confrontam com a estratégia adotada pelo ministro Paulo Guedes em sua intervenção na Comissão Mista da Reforma Tributária, no último dia 05 de agosto, ao afirmar que 85% das empresas do setor de serviços não seriam atingidas pela reforma da CBS (“primeira fase”) por estarem enquadradas no regime tributário do SIMPLES Nacional. A bem da verdade, diga-se, esses dados referem-se aos setores de serviço e comércio, quando considerados em conjunto, e o percentual de empresas que se enquadram nesse regime tributário, quando considerado o setor de serviços isoladamente, é bem inferior, de 39,9%.
Ainda em sua exposição, o ministro destacou que do percentual de 85%, 15% seria de empresas “sofisticadas”, “que já possuem créditos decorrentes do processo produtivo” e, por isso, “poderiam repassar preços a consumidores abastados”. Citou, como exemplo, escolas de primeira linha e hospitais de excelência, chegando a nominar alguns dos mais conhecidos do país.
Porém, a realidade dos dados é diferente: se 39,9% das empresas do setor de serviços operam no SIMPLES, cerca de 60% estão operando sob outros regimes tributários. Destes 60% que se sujeitam a outros regimes que não o do SIMPLES Nacional, cerca de 80% operam por meio do regime de lucro presumido e apenas 20% pelo regime de lucro real.
São duas, portanto, as conclusões alcançadas, ao contrário do que dito pelo ministro: a) o setor de serviços é muito mais atingido pela CBS do que anunciado pelo governo; e b) as empresas atingidas não possuem capacidade de obtenção de créditos da CBS durante seu processo produtivo.
É preciso levar em conta que essas empresas atingidas, além de numericamente relevantes, representam 60% do universo do segmento econômico, são também as maiores, e que mais empregam e, ainda, mais recolhem tributos. A pretendida reforma atinge negativamente, com aumento significativo da carga tributária, 68% do PIB nacional.
Ou seja, para além da bem-vinda simplificação, a reforma apresenta forte víeis arrecadatório, haja vista ampliar a base de tributação por meio de uma redistribuição da carga tributária entre setores da economia, com enorme sacrifício imposto aos setores de serviços.
É preciso considerar as características particulares da prestação de serviços, incapaz, por sua própria natureza, de apropriar-se satisfatoriamente de créditos da CBS. Para tanto, o olhar deve ser voltado ao fato de que parte significativa de seus custos corresponde a gastos com mão de obra.
Se esses são os elementos essenciais e relevantes da atividade econômica, a proposição é que se discuta no âmbito político a compreensão de tais despesas na extensão conceitual de insumos, o que não encontra óbice na essência constitucional da não-cumulatividade, nem na jurisprudência sobre o tema.
A propósito, a vanguarda jurisprudencial, inspirada no julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.221.170 (DJe 24/4/2018), de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, ao anotar o conceito de insumos, vem abraçando a tese de que “(…) deve ser aferido à luz dos critérios de essencialidade ou relevância, ou seja, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de terminado item – bem ou serviço – para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo Contribuinte (…)”.
A imposição constitucional, nesse particular, evidencia-se com o advento da Emenda Constitucional nº 103/2019 – Reforma da Previdência – que reconfigurou o § 9º do art. 195, no sentido de que as contribuições sociais, tal como a pretendida CBS: “poderão ter alíquotas diferenciadas em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão de obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho.
Ainda dentro de uma perspectiva global da reforma tributária para a sociedade, não se pode perder de vista que essa alta concentração de mão de obra também representa alta capacidade de geração de emprego. O devido cuidado normativo com o setor de serviços também representa uma política pública de estímulo ao emprego formal, à contratação e ao desenvolvimento da economia. Qualquer medida tributária que comprometa a empregabilidade e o poder aquisitivo da população atinge frontalmente os inafastáveis ideais de justiça fiscal e de desenvolvimento social.
Essas reflexões conduzem ao título do presente artigo. Se todo processo produtivo, seja ele relacionado à fabricação de um bem ou à prestação de um serviço, depende do fator humano, por que desprezá-lo como custo operacional na apropriação de créditos para fins de tributação? Sopesadas as variáveis envolvidas, por que não reconhecer a essencialidade da mão de obra quando ela é o fator primordial da atividade tributada?
Se o setor de serviços tem relevância econômica incontestável e se a contratação formal sempre significou alto custo ao empregador, embora seja uma importante política governamental, a força propulsora do emprego deve ser prestigiada e não penalizada. É o momento de repensar sobre a lógica do sistema, corrigir as incongruências e os retrocessos do passado que condicionam o olhar e ainda permeiam a pretensão de reforma tributária, de forma que o poder legiferante não se descole das premissas constitucionais e dos reais indicadores de uma tributação moderna e eficiente: o pleno emprego, a geração de renda às famílias e o desenvolvimento do país.
*Fonte: jota.info
EDUARDO MUNIZ MACHADO CAVALCANTI – Advogado. Procurador do DF. Mestre em Direito Público pela UFPE.
ARMANDO MONTEIRO BISNETO – Advogado e bacharel em Ciências Contábeis. Pós graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo IDP. Especialista em Relações Governamentais.