Tributação em procedimentos arbitrais
Na coluna de hoje trataremos de tema que há muito é objeto de discussões no âmbito do CARF, qual seja, a desconsideração da personalidade jurídica para tributação de valores decorrentes de serviços profissionais diretamente na figura do sócio pessoa física da empresa prestadora de serviços.
Com relação ao tema, os casos mais corriqueiros no âmbito do CARF envolvem autuações lavradas contra sociedades profissionais em que os valores distribuídos a título de lucros são descaracterizados como tal e são considerados como pro-labore atraindo, por consequência, a incidência de imposto de renda e contribuições previdenciárias sobre tais montantes. Neste sentido, exceto por casos de flagrante fraude – especialmente relacionados à precarização da relação de emprego (abuso da figura da terceirização) -, a jurisprudência daquela corte administrativa tem majoritariamente refutado tal abordagem do Fisco federal.
Com relação ao acórdão hoje em destaque, embora relacionada ao acima exposto, a matéria de fundo retrata uma abordagem um pouco diferente do que a fiscalização vem aplicando nos procedimentos tendentes a desqualificar os valores recebidos a título de distribuição de lucros por sociedades prestadoras de serviços. No caso, o acórdão que se traz à tona não se resumiu à questão substância da sociedade profissional prestadora de serviço ou mesmo eventual precarização da relação de emprego, mas sim versou sobre a possibilidade ou não da atividade ser remunerada via pessoa jurídica. Vejamos.
O caso em questão decorreu de autuação fiscal calcada no entendimento de que os valores decorrentes de serviços prestados por árbitro indicado para procedimento arbitral, regulamentado pela Lei nº 9.307/96, somente poderiam ser percebidos por pessoa natural, de modo que seria indevido o faturamento dos valores via escritório de advocacia ao qual o árbitro pertencia ao quadro de sócios. Desta maneira, os valores que então haviam sido submetidos às regras de tributação das pessoas jurídica deveriam ser submetidos às regras de tributação aplicáveis às pessoas físicas, tendo sido lavrada autuação contra o árbitro (pessoa física) para cobrança de Imposto de Renda sobre a Pessoa Física – IRPF, sobre todos os valores faturados a tal título pela sociedade em que então o Contribuinte participativa como sócio.
Nos termos do relatório que acompanhou o auto de infração, argumentou a fiscalização que para “determinar se o contribuinte do imposto será uma pessoa física ou uma pessoa jurídica, a legislação do Imposto de Renda adota o critério da natureza da renda auferida e/ou a posse dos bens produtores de renda. Assim, as atividades de natureza civil ou comercial praticadas com o fim especulativo de lucro devem ser tributadas por contribuintes pessoas jurídicas; já os rendimentos do trabalho pessoal, como salários, honorários do livre exercício de profissões, proventos de ocupações ou prestação de serviços não comerciais e royalties, devem ser tributados como rendimentos de pessoas físicas”.
Nesta linha, alegou a fiscalização que o Contribuinte, ao exercer a atividade de árbitro, não estava a fazendo em nome da sociedade de advogados da qual fazia parte do quadro de sócios, mas sim em nome próprio, na medida em que seu apontamento para compor o painel arbitral decorreu exclusivamente por suas condições individuais – capacidade técnica, prestígio profissional e experiência.
Deste modo, considerando que não se estava diante de contratação de serviços jurídicos para representação de parte litigante no procedimento arbitral, mas sim de honorários pela atuação na condição de árbitro – caráter personalíssimo, entendeu a fiscalização que tais valores não poderiam compor o faturamento do escritório de advocacia em que o árbitro compunha o quadro societário.
Em sua impugnação, argumentou o Contribuinte que a função de árbitro está inserida no escopo de atividades advocatícias, conforme expressamente reconhecido pelo Conselho Federal da OAB. De mais a mais, mesmo reconhecendo-se que os serviços prestados na condição de árbitro são de caráter personalíssimo, ainda assim a tributação via pessoa jurídica dos valores decorrentes de tal atividade seria possível, tendo em vista a norma contida no artigo 129 da Lei nº 11.196/2005.
Ainda, argumentou o Contribuinte que, embora de caráter personalíssimo, ao exercer a sua função de árbitro este o fez contando com o suporte técnico de outros profissionais que integram o escritório do qual faz parte na condição de sócio. Com efeito, a atuação como árbitro não se resume à presença no procedimento arbitral, mas sim envolve uma gama de atividades com pesquisas, análises técnico-jurídicas, revisões bibliográficas, etc., que justificam o apoio de outros profissionais e, portanto, o faturamento dos serviços pela sociedade profissional.
No âmbito da Delegacia Regional de Julgamento – DRJ, os argumentos lançados em sede de impugnação foram rejeitados sob a alegação de que “a atividade arbitral, por sua própria natureza, é exclusiva da pessoa natural, pois é incompatível o exercício de julgamento por pessoa jurídica”.
Interposto recurso voluntário, sobreveio acórdão de turma do CARF que, por voto de qualidade – importante destacar que o julgamento ocorreu antes da alteração provocada pela Lei nº 13.988/20 quanto aos efeitos do voto de qualidade -, manteve a autuação sob o argumento de que a arbitragem é uma atividade personalíssima, na medida em que se constitui em “meio de resolução de conflitos exercida por qualquer pessoa física (não jurídica), que, na condição de árbitro, equipara-se a funcionário público, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, para os efeitos da legislação penal, e deve ser independente, imparcial e competente, atuando com diligência e discrição.” (Acórdão nº 2402-008.171).
Pela relevância e, de certa maneira, ineditismo do caso, nos parece importante destacar algumas das reflexões articuladas no voto vencido, proferido pela Conselheira-relatora, quanto à natureza das atividades desempenhadas pelo Contribuinte na condição de árbitro e o direito de a remuneração por tais atividades ocorrer via pessoa jurídica.
Conforme entendimento veiculado no voto vencido, embora a atividade de árbitro não tenha como pré-requisito qualquer formação jurídica, pela sua natureza – exercício de função julgadora – é esperado que o árbitro tenha conhecimentos jurídicos para o exercício desta função, razão pela qual o próprio Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil – CEOAB, incluiu as atividades de árbitros em seu escopo.
De mais a mais, bem destacou a Relatora que existem outras atividades que, embora próprias da advocacia, não são privativas de advogado, como é o caso da impetração de habeas corpus, o que implica em reconhecer que o fato de ser possível o desempenho da função de árbitro por qualquer pessoa, não retira a natureza de serviços jurídicos sobre tal atividade o que, em face da ausência de qualquer previsão em contrário, possibilitaria o faturamento de tais serviços por pessoa jurídica (escritório de advocacia).
Com relação ao argumento apresentado pela fiscalização de que a função de árbitro tem caráter personalíssimo, a Conselheira-relatora a contestou sob a alegação de que, a rigor, toda a atividade jurídica, em alguma medida, tem caráter personalíssimo, sendo a constituição de sociedade de advogados uma opção para prestação destes serviços. Exemplo claro disso seriam as contratações de pareceres emitidos por renomados juristas, não havendo qualquer ilegalidade no faturamento de tais serviços por pessoa jurídica.
Seguindo, foi ressaltado pela Conselheira-relatora o encerramento de dúvidas quanto à possibilidade de tributação, via pessoa jurídica, dos serviços de caráter personalíssimo, tendo em vista as disposições do artigo 129 da Lei nº 11.196/05, o qual esclareceu que mesmo honorários decorrentes de serviços com tais características podem ser levados à tributação via pessoa jurídica. Destarte, o argumento de que a atividade de árbitro é de caráter personalíssimo não seria um impeditivo à sujeição às regras de tributação de pessoas jurídicas, especialmente após a edição da Lei nº 11.196/05.
Neste ponto, pela sua objetividade e clareza de argumentos, merece destaque o seguinte trecho do voto vencido:
“Após o advento do art. 129 da Lei nº 11.196/2005, a prestação de serviços
intelectuais por sociedade, mesmo que contratado um serviço individual, com designação de obrigações de caráter personalíssimo a um determinado sócio, submete-se à tributação aplicável às pessoas jurídicas. De fato, a norma não cria nova forma de tributação, tampouco busca atribuir condição de contribuinte à pessoa diversa daquela determinada pelo CTN. Simplesmente, veio dirimir dúvidas quanto à tributação dos rendimentos recebidos pela prestação de serviços intelectuais quando prestados pelas sociedades ou em nome destas, mesmo que em caráter personalíssimo.”
Entretanto, não obstante a consistência argumentativa, infelizmente, tal posicionamento não prevaleceu no âmbito do CARF. Nos termos da posição vencedora pela técnica do voto de qualidade, “a função de árbitro está restrita à pessoa física (não jurídica) com capacidade civil e que tenha a confiança das partes”.
Entretanto, nos parece que o artigo 13 da Lei nº 9.307/96, ao dispor que o árbitro pode ser “qualquer pessoa capaz”, o fez apenas para informar que a função de árbitro não depende de qualificação específica prévia (ou seja, não se trata de atividade privativa da advocacia, por exemplo), mas não para impedir que eventual faturamento por serviços prestados na condição de árbitro pudesse ser realizado via pessoa jurídica.
Com efeito, seguindo o raciocínio empreendido pelo voto vencedor, grande parte dos serviços em geral não poderiam ser faturados por pessoas jurídicas, especialmente aqueles decorrentes de atividades relacionadas a serviços que dependem de atividade especializada, tais como engenharia, medicina e, por óbvio, advocacia. No entanto, o fato de atividade de árbitro ser exercida por qualquer “pessoa capaz” não impede que essa pessoa fature os serviços prestados por intermédio de sociedade na qual conste no quadro societário.
A justificar seu posicionamento, o conselheiro redator do voto vencedor trouxe à baila conceitos advindos de direito estrangeiro, notadamente, Direito Português, em que haveria regra prevendo que a atividade de árbitro deve ser executada (e remunerada), exclusivamente por pessoa física.
Ora, o apoio em legislação ou doutrina estrangeira pode servir apenas como reforço argumentativo à tese desenvolvida, mas nunca como elemento definidor de posicionamento, ainda mais se a própria legislação brasileira, no caso, a Lei nº 9.307/96, não impõe qualquer impedimento a que o faturamento pelos serviços decorrentes da atividade de árbitro seja realizado diretamente pela pessoa jurídica em que o árbitro conste do quadro societário. Neste ponto, nos parece equivocada a conclusão veiculada de que “ainda que conste do objeto social da Sociedade de Advogados (…) a prestação de serviços de arbitragem, aquelas não podem ser árbitro pela simples razão de que árbitro é uma função restrita à pessoa natural, física, ou como diz o Direito Português, pessoa singular, do que deflui que a remuneração é sempre da pessoa física do árbitro, que, de fato, exerceu a função”.
Mais uma vez: se a Lei nº 9.307/96 não veda que as atividades de árbitro, embora exercidas por pessoa capaz, possam ser faturadas via pessoa jurídica, nos parece indevida a conclusão da Fiscalização para desconsiderar o faturamento realizado pela pessoa jurídica no caso em comento. O faturamento realizado via pessoa jurídica enquadra-se, justamente, naquela situação de liberdade de auto-organização protegida pelos art. 170 e seguintes da Constituição Federal.
Quanto à aplicação do artigo 129 da Lei nº 11.196/05, foi manifestado no voto vencedor que tal dispositivo não protegeria o direito pleiteado pelo Contribuinte, na medida em que tal regra estaria direcionada a evitar a caracterização de vínculo empregatício entre profissionais de determinada sociedade e um específico e habitual tomador de serviços. Ocorre que tal situação não se apresenta aplicável no caso em questão, pois a atividade de árbitro, por si só, demanda a ausência de qualquer vínculo entre as partes contratantes tendo em vista a imparcialidade que se espera de um árbitro não havendo que se falar em qualquer necessidade de afastamento de relação de emprego.
Ademais, conforme já adiantado, o artigo 129 da Lei nº 11.196/05 veio a dirimir dúvidas sobre as incidências tributárias e previdenciárias oriundas da relação jurídica de todos aqueles profissionais que exercem determinadas atividades notadamente intelectuais (natureza científica, artística ou cultural), mas o fazem mediante pessoa jurídica regularmente constituída. Assim, entendemos equivocado reduzir a regra do artigo 129 da Lei nº 11.196/05 ao objetivo de evitar a caracterização de vínculo empregatício quando, em verdade, o referido dispositivo veio a esclarecer sobre o regime jurídico-tributário das atividades enquadradas em tal dispositivo, sendo a não-caracterização de vínculo empregatício uma mera consequência de tal regime.
Enfim, a discussão veiculada no acórdão hoje em destaque trata-se de tema novo no âmbito do CARF, mas merece o devido destaque tendo em vista o cada vez maior emprego da arbitragem como meio de resolução de conflitos, especialmente aqueles de maior complexidade.
De mais a mais, também há de se de destacar o crescimento da mediação e conciliação como instrumento de resolução de conflitos, o que nos leva a crer que mais e mais casos similares ao presente irão desaguar no CARF, razão pela qual é importante, até mesmo para evitar retrocessos no desenvolvimento de tais meios alternativos de resolução de conflitos, que não existam dúvidas quanto à tributação aplicável à remuneração dos serviços profissionais prestados pelos árbitros no âmbito das atividades regulamentadas pela Lei nº 9.307/96, especialmente aqueles faturados via pessoa jurídica, tendo o CARF um papel fundamental na estabilização desta controvérsia.