Recentemente tem sido noticiado que um dos pontos da chamada “reforma tributária”– que cria (ou recria com outro nome) a Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS) – vai fazer com que os tributos incidentes sobre os livros sejam elevados e, consequentemente, o livro em si ficaria ainda mais caro no país.
A proposta do ministro da Economia seria a de alterar o PL nº 2.148/2020, de iniciativa do senador Jean Paul Prates (PT/RN), para acabar com a “isenção” conferida aos livros por força da redução de alíquota do Cofins/PIS-PASEP a zero, conforme indicado na Lei nº 10.865/04.
Segundo orientado pelo Governo Federal, essa redução de alíquota sobre os livros, que na prática resulta em isenção, traria benefício apenas a quem poderia pagar pela aquisição desse tipo de produto, o que, em última análise, embora aparente traduzir a realidade da distribuição de renda brasileira, especialmente quando associada ao fato de a educação ser um referencial relevante na qualificação da faixa de renda do trabalhador, em verdade esconde uma percepção enviesada e bastante limitada quanto à importância da literatura e do conhecimento científico embarcado nas palavras escritas em cada uma das páginas de um livro.
De toda sorte, para além desse aspecto, e antes de mais nada, é importante primeiramente discernir o que vem a ser uma isenção, até mesmo para deixar claro que não está sendo colocado em questão a imunidade sobre os impostos a qual os livros de um modo geral já tem garantidos na Constituição Federal, e cuja iniciativa de se extinguir, por si só, já seria uma violação à lógica de proteção das garantias fundamentais, as quais foram impostas pelos constituintes ao Estado.
Vejam que a imunidade tributária sobre os livros, diferentemente da isenção, é um direito reflexo da garantia constitucional à liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (art. 5º, inciso IX), que, por sua vez, atrai os limites impostos pelo aspecto conceitual das cláusulas pétreas (art. 60, §4º). Assim, por mais que se queira, não seria possível, ao menos na ordem constitucional vigente, alterar a dimensão da imunidade tributária sobre os livros.
Já a isenção, e aqui o ponto nevrálgico, é resultado de uma escolha do Estado, manifesta em lei (como o caso da Lei nº 10.865/04), em vistas à proteção de determinado segmento ou em função de alguma política pública de promoção a alguma necessidade social.
Enfim, ao que interessa, é uma escolha do Governante de momento que, em vista a uma ou outra política pública, entende por bem por conceder ou não, por intermédio da lei (ou seja, com a participação do Poder Legislativo), um certo benefício fiscal. Trata-se, portanto, de um benefício e, como tal, assim como concedido, da mesma forma pode ser cancelado. Mas, em última análise, representa uma escolha de Governo.
Bom lembrar, a propósito do tema, que impostos são uma espécie do gênero “tributo”, e como a Lei nº 10.865/04 reflete a espécie das “contribuições especiais”, e não um “imposto”, ao qual, como se disse, os livros exercem plena imunidade, estamos aqui lidando de fato com uma “escolha de Governo”.
É claro, existem algumas limitações a essa escolha, pois como bem sabemos, nossa trajetória republicana nem sempre trouxe luzes à transparência necessária aos atos públicos e, ao caso, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) toda e qualquer isenção que for concedida haverá de vir acompanhada do “impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes” (art. 14).
Esse assunto, aliás, pode comportar alguma discussão quando estamos falando de “redução de alíquota a zero” em detrimento da conceituação adequada enquanto isenção, como foi o caso da Lei nº 10.865/04, que mesmo tratando de diversas isenções, quando falou dos livros (e outros), conferiu a redução de alíquotas.
Enfim, embora seja um elemento técnico importante, esse é um assunto que pode ser tratado em outro momento, pois, ao caso, a ideia do Governo atual em relação aos livros, independentemente de se referir à redução de alíquota ou isenção, é simplesmente fazer com que o Cofins/PIS-PASEP voltem a incidir – com alíquotas próprias, que seja – sob o argumento de que a não incidência desses tributos estaria a privilegiar apenas às classes sociais mais abastadas que, na percepção do ministro da Economia, seriam os que de fato possuem interesse em adquirir esse tipo de produto.
Em resumo, para o Governo, livros não compõem o cabedal de prioridades das classes sociais mais carentes, e os recursos eventualmente auferidos com a tributação desse tipo de produto seria um importante elemento de promoção de outras políticas que, na lógica aplicada por ele, teriam mais prioridade.
Alguns pontos, no entanto, talvez para melhor esclarecimento, precisam ser informados ao Governo no que concerne a esse tipo de iniciativa, partindo da evidente premissa de que entre um livro e um prato de comida para quem tem fome, estou certo de que não haverá quem questione a escolha da sobrevivência.
Mas, bom que se diga, não estamos aqui falando em sobrevivência – embora esse também seja um problema infeliz de nosso Brasil – mas sim em escolhas públicas, ou melhor, em escolhas políticas.
É disso que se trata, pois do contrário, se estivéssemos no limite do prato de comida, estaríamos prontos também para discutir o salários e benefícios dos servidores do Legislativo, do Judiciário e, em alguns casos, também do Executivo, assim como outros tantos benefícios ficais concedidos aos mais diversos segmentos de mercado, ou ainda a disputa por tantos outros investimentos que o Governo tem feito ao necessário desenvolvimento do país. Ou seja, hipocrisia a parte, não estamos discutindo o prato de comida, definitivamente não é esse o caso.
A questão é saber por que a escolha dos livros? Qual a relevância econômica que o fim da redução de alíquota da Cofins/PIS e PASEP sobre os livros vai gerar ao Brasil? Parece ser um elemento importante de se apresentar diante do fato – sim, um fato – de estarmos vilipendiando a pesquisa científica, a liberdade de conhecimento, de expressão e, mais, de comunicação.
Vale aprofundar ainda mais o atraso científico para impor tributos sobre os livros? Essa fórmula paga a limitação que já existe na profusão do conhecimento e, ainda, na aquisição do conhecimento estrangeiro que vem carregada nas páginas das obras que aportam nesse país?
O Brasil hoje vivencia um atraso no seu desenvolvimento educacional que há décadas vem se esmerando em piorar – por diversas razões –, e não me parece minimamente razoável qualquer medida que caminhe em sentido contrário a profusão do conhecimento, ainda que esse seja apenas um dos diversos fatores que causaram o atraso brasileiro.
É muito longe da realidade a percepção do Governo de que os livros são um produto de interesse de pequena parcela da sociedade que, por sua vez, seria aquela que já detém as condições financeiras necessárias para acessá-los. É tanto quanto fora da realidade a ideia de que o preço dos livros não afeta a realidade econômica das famílias que pretendem adquiri-los.
E não precisa muito para conhecer desses dados, pois basta uma visita nas salas de aula, do ensino fundamental à universidade, e questionar aos alunos quanto custa um livro acadêmico e quantos foram capazes de adquiri-los no último ano.
Isso, é claro, sem falar na cultura impregnada na literatura oferecida pelos sonhadores e imaginativos escritores que levam espíritos e mentes para além da realidade experimentada, que, ao fim e ao cabo, vão fomentar a criatividade, a invencionice e, mais ainda, a satisfação que o uso da imaginação traz às nossas vidas.
O despertar da imaginação das crianças que um dia vão participar do desenvolvimento econômico e científico do Brasil não pode ficar a mercê da fantasia mercantil oferecida pelas telenovelas e programas de televisão que, a cada dia, ao contrário do imaginário infantil, se prestam a entregar uma realidade pronta e acabada, e que não dá a mínima chance à criatividade.
Sem livros, a cultura será resumida a isso: ao que é entregue pela televisão, pelos canais de streaming de toda qualidade e ordem que hoje são acessados diuturnamente pelos brasileiros.
A realidade da Esplanada dos Ministérios, seja a do nosso ministro da Economia, que estudou nas melhores escolas do mundo, ou mesmo seus técnicos, servidores bem remunerados, não condiz com realidade social da majoritária parcela da sociedade brasileira, talvez porque não conheçam dos problemas enfrentados pelos estudantes brasileiros, ou simplesmente esqueceram do tempo em que frequentavam as salas de aula, ou de fato não tenham problemas com a aquisição do conhecimento, muitas das vezes pago com o dinheiro público com a concessão de graciosas licenças capacitação realizadas no mundo todo, e por isso tenham chegado a essa conclusão. Talvez, de fato, a eles, essa seja uma escolha, mas, infelizmente, não é a realidade do nosso Brasil.
Mais do que isso, até mesmo para não pessoalizar a questão, ou resumi-la a quem um dia precisou dos livros para ser aprovado em concurso público, a política de incremento de custos sobre livros por parte de qualquer ação do Estado é absolutamente contraditória com os gastos realizados com os mais diversos programas sociais de incentivo e acesso à educação, assim como à profusão da ciência que o Brasil tenta promover diuturnamente.
Não faz sentido algum destinar bilhões aos programas de financiamento estudantil ou às isenções para o acesso ao ensino superior, como o caso do PROUNI, por exemplo, e minar a condição para a aquisição de livros por parte dos alunos que participam desses programas. Não faz sentido entregar a orientação acadêmica de sala de aula sem permitir que o aluno possa realizar os estudos necessários à sua formação e, do ponto de vista público, desenvolver este país.
Portanto, não é uma questão de críticar à política econômica ou efetivamente à escolha política por parte do Governo Federal em tributar o que quer que seja, mas sim saber: por que os livros?
*Fonte: jota.info
JOÃO PAULO ECHEVERRIA – Advogado, professor de Direito Tributário, mestre e doutorando em Direito.