O que caracteriza uma reforma tributária?
A reforma tributária voltou ao centro dos debates. Diante disso, é fundamental discutir o que seja uma reforma tributária e o que deva ser feito para solucionar as deficiências do atual sistema.
Uma reforma tributária supõe a formação – ou o resgate – de um sistema tributário racional e não meramente histórico. Sistemas, em geral, são conjuntos de elementos interdependentes e coordenados entre si a partir de princípios que os fazem funcionar de modo orgânico, como totalidade constituída para atender a certas finalidades.
Os sistemas tributários podem ser classificados de acordo com seu nível de coesão. Sistemas racionais são aqueles dotados de lógica inaugural e princípios unificadores definidos, vinculantes tanto para sua aplicação quanto para eventuais reformas a que sejam submetidos.
Já os históricos são aqueles compostos de normas editadas ao longo de anos, sem a observância de elementos de conexão. Sob a ótica constitucional, os sistemas tributários classificam-se por sua plasticidade e grau de abstração, podendo ser rígidos ou flexíveis/exaustivos ou principiológicos.
No Brasil, a Constituição de 1988 (CF/88) abandonou o modelo impositivo então existente e criou algo novo, dotado de racionalidade inaugural informada pela preocupação com garantias em favor do contribuinte e equilíbrio entre os entes federados.
A rigidez na discriminação das competências e das espécies tributárias, a impedir fossem estas intercambiáveis, era essencial para evitar que o Estado aumentasse suas despesas ilimitadamente, uma tendência de todo Governo. Portanto, o sistema foi concebido para ser racional (não histórico), rígido e exaustivo, limitando alterações apenas ao necessário para assegurar o funcionamento do todo.
Porém, paradoxalmente, desde a Constituição de 1988 o conjunto tributário deixou de ostentar os atributos de um sistema, revelando, hoje, um emaranhado não harmônico de normas tributárias. Pouco a pouco, com a aquiescência da jurisprudência do STF, a União Federal abusou da edição de medidas provisórias em matéria tributária e da criação de contribuições sociais que era verdadeiros impostos. O mesmo se deu com as taxas.
Também com a permissão de alguns Tribunais, a União passou a chamar de renda aquilo que definitivamente não o é (a exemplo da tributação do mero saldo positivo de equivalência patrimonial das empresas controladas e coligadas no exterior) e a editar leis com delegações em branco ao executivo.
No caso dos Estados, o subsistema do ICMS implodiu em função, por exemplo, do aumento paulatino de sua complexidade, da guerra fiscal e da erosão de sua base econômica. Até mesmo o ISS passou a ostentar características de um “não-sistema” a partir do aumento da guerra fiscal entre Municípios, indefinição de fatos geradores confrontantes com o ICMS (a exemplo das chamadas utilidades digitais) e alterações no município competente para a cobrança do imposto sobre determinadas atividades (prestador versus tomador).
O sistema gestado em 1988 era racional e rígido, mas se tornou histórico e flexível, modificável ao sabor dos humores políticos e das necessidades arrecadatórias do Estado, sem qualquer compromisso com as garantias fundamentais do contribuinte, tampouco com o princípio federativo.
O quadro não deixa dúvida quanto à necessidade de uma reforma tributária. Porém, é preciso refletir se os projetos em trâmite no Congresso cuidam de uma reforma sistêmica ou não.
Se uma proposta de reforma tributária deixar de considerar partes relevantes do sistema, então não poderá ser ela considerada verdadeira reforma.
A PEC 45 mira apenas o consumo. Parece ignorar problemas sistêmicos no imposto de renda, no imposto sobre produtos industrializados, nas contribuições sociais, na indevida utilização de medidas provisórias em matéria tributária, dentre outros.
Introduz conceitos novos que precisarão ser interpretados pelo contribuinte, fisco e, finalmente, Judiciário e acena com possível problema jurídico decorrente de eventual inconstitucionalidade por ofensa ao pacto federativo. Embora um pouco mais ampla do que a PEC 45 (por interferir com impostos sobre propriedade e sua transmissão), a PEC 110 também não pretende reformar aqueles itens e, dependendo de como for aprovada, poderá também incidir em inconstitucionalidades.
No caso da CBS, recentemente apresentada pelo Governo, as ideias de “reforma” e de “sistema” parecem (ainda) mais prejudicadas. Trata-se de proposta de mera unificação de duas contribuições sociais, o PIS e a Cofins.
Embora acerte em alguns pontos, tais como excluir outros tributos de sua base de cálculo, unificar duas contribuições em uma e desonerar a cesta básica, a proposta da CBS é problemática. Em primeiro lugar, possui todas as características de imposto, o que é reforçado pelo fato de que a GRU permite, hoje, desvincular 30% das receitas.
Ao deixar de chamar de IBS, para instituir nova contribuição, a União buscou desviar da competência residual prevista no art. 154 da CF, o que implicaria a necessidade de instituição do tributo por lei complementar.
Em segundo lugar, há contradição entre seu fato gerador (“operações com bens e serviços”), o que em rigor pertence às competências materiais exclusivas dos impostos de estados e municípios (ICMS e ISS), e sua base de cálculo que diz com a “receita bruta” das empresas.
Em terceiro lugar, o projeto onera demasiadamente o setor de serviços, especialmente os prestados a pessoa natural que não poderá tomar créditos desse imposto. Haverá impacto direto nos preços finais e, consequentemente, na inflação. O prestador que não conseguir repassar o aumento no preço, sofrerá com aumento brutal da carga tributária.
No mínimo, na hipótese de serviços prestados a pessoa física/consumidor final, deveria haver uma alíquota intermediária ao lado da (já elevada) alíquota de 12%, sob pena de afrontar os princípios da isonomia e capacidade contributiva.
Em quarto lugar, embora o projeto tenha acertado ao desonerar a cesta básica e serviços de saúde prestados ao SUS, errou ao não isentar a educação e os serviços de saúde particulares. Isso terá reflexos sobre o acesso do consumidor a serviços fundamentais (arts. 5º, XXXII, 6º, caput, 23, V, 170, V, 196 e 199 da CF).
No caso da saúde, haverá pressão de demanda sobre o SUS e retrocesso no adequado tratamento de saúde aos que mais necessitam. Similarmente, no caso da educação, a ausência de isenção gerará aumento substancial nos preços das mensalidades, obrigará grande contingente de famílias a acionar o ensino público básico e interferirá com o acesso das camadas mais pobres ao ensino superior privado, considerando que a CBS extinguirá os benefícios de PIS/Cofins relacionados ao Programa Universidade para Todos (PROUNI).
O Governo “vendeu” a ideia de que a CBS resolveria os problemas do “sistema tributário complexo e caro”, mencionando o gasto anual de 1.501 horas para cumprir suas obrigações tributárias, o tempo médio de duração de execuções fiscais (que superam oito anos na Justiça), a concorrência desleal entre as empresas e a existência de 51% do PIB em discussão no contencioso tributário federal.
Será mesmo que o gasto de 1.501 horas para o cumprimento das obrigações tributárias tem origem na legislação federal relacionada ao PIS/Cofins ou decorre, em verdade, do emaranhado de legislações e atos infralegais (instruções normativas, soluções de divergência, etc.) relacionadas não apenas a esses, mas aos demais tributos? Será que a existência de um contencioso de 51% do PIB tem origem apenas na legislação relacionada ao PIS/Cofins ou surge, em verdade, de problemas culturais e estruturais em que todos os Fiscos (municípios, estados e União) enxergam no contribuinte um adversário e buscam a interpretação que favoreça – a qualquer preço – a arrecadação? Será que a CBS resolverá o problema relacionado ao tipo de crédito aproveitável pelo contribuinte ou o Fisco novamente interpretará o princípio constitucional da não-cumulatividade (art. 195, § 12 da CF) – por ato infralegal – de forma restritiva?
A CBS e nem mesmo as PECs em tramitação no Congresso parecem resolver tais problemas. Para agregar ao debate, apresentamos as seguintes proposições que parecem contribuir ao estabelecimento de um sistema tributário racional:
- A reforma precisa mirar o “todo” e não apenas “partes” do sistema. Não é possível alterar unicamente os tributos incidentes sobre consumo, tal como hoje se apresenta a PEC 45 e a CBS (e, de algum modo, a PEC 110), sob pena de tornar o sistema mais regressivo, contrariando o predicado da isonomia. Nesse sentido, é fundamental reformar também os tributos sobre a renda (IRPJ, CSLL e IRPF) que têm a possibilidade de gravar a capacidade contributiva de cada indivíduo com maior precisão, mediante uma gradação justa da carga tributária incidente sobre as empresas e as pessoas físicas.
- A unificação de tributos de competência estadual (ICMS), municipal (ISS) e federal (IPI, PIS, Cofins, dentre outros) em um único IVA (ou IBS), regulado por lei complementar federal, pode ofender o núcleo essencial do pacto federativo suposto pelos arts. 1º e 60, § 4º, I, da Constituição e gerar insegurança jurídica decorrente da necessidade de interpretação de novos conceitos.
- Seria mais pragmático e consentâneo com a racionalidade sistêmica suposta pela CF/88 atualizar os tributos existentes com alterações tópicas na Constituição e profundas em nível infraconstitucional para fins de uniformização e simplificação das obrigações. O ICMS poderia ser modernizado para gravar as utilidades digitais com cobrança no destino, transformando-se em IVA Estadual que respeite a não-cumulatividade ampla. O ISS poderia ser mantido e racionalizado para os serviços prestados a pessoas naturais, enquanto os prestados a pessoas jurídicas seriam gravados pelo IVA Estadual. Neste caso, haveria um aumento na participação dos municípios sobre o IVA. O IPI seria atualizado para servir como imposto efetivamente seletivo.
- Mesmo que se admita a criação de um IVA ou IBS dual (uma de competência da União e outro dos Estados), é preciso esclarecer que a adoção de alíquotas únicas sem qualquer isenção/alíquota zero não reflete a prática internacional e torna o sistema tributário mais regressivo. Além disso, seria fundamental manter fonte própria de receitas aos Municípios.
- Deve-se proibir que contribuição social incida sobre a mesma materialidade de impostos discriminados na CF, que o produto de sua arrecadação seja desviado de sua finalidade e que não obedeça ao princípio da referibilidade. Sem isso, o que impedirá a União de, no futuro, criar novas contribuições com a mesma materialidade do(s) IVA(s) debatido (s)?
- Deve-se proibir a incidência de tributo sobre tributo.
- Deve-se proibir medida provisória em matéria tributária em face dos reiterados abusos do Executivo em editar MP’s sem a ocorrência de fato (“caso de”) que se destacasse de eventos corriqueiros e exigisse pronta atuação (art. 62 da CF).
- Deve-se responsabilizar os agentes públicos que autuem o contribuinte contra a interpretação razoável da lei, assim entendida como aquela atribuída pela jurisprudência. Afinal, um sistema antifrágil precisa de gestores responsáveis por seus atos. A tolerância à irresponsabilidade caracteriza a fragilidade do sistema, camufla sua vulnerabilidade e impede seu desenvolvimento.
- Deve-se proibir multas exorbitantes, assim consideradas aquelas que superem 100% do valor do tributo, vedando-se sua cumulação com outras, especialmente quando houver mero descumprimento de obrigação acessória sem prejuízo ao erário.
- Deve-se proibir que o Executivo, a pretexto de interpretar a legislação tributária, limite direitos legal ou constitucionalmente assegurados.
Em conclusão, apenas a organização de um sistema tributário racional e não meramente histórico poderá receber a chancela de reforma tributária. Esta não pode deixar de considerar partes relevantes do sistema. Não se trata de mera justaposição de tributos e nem de tributos intercambiáveis. As 10 proposições acima podem contribuir para o debate, de modo a atacar problemas existentes, preservando-se as garantias dos contribuintes e o pacto federativo.
*Fonte: jota.info
DANIEL CORRÊA SZELBRACIKOWSKI – mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).