O protagonismo do modelo federal de transação tributária
No último ano, o modelo de transação tributária adotado pela União por meio da MP nº 899/19 e, posteriormente, da Lei nº 13.988/20, além de suscitar importantes reflexões sobre o instituto descrito no art. 171 do CTN, figurou como fonte de inspiração para outras esferas federativas.
Por um lado, muitos estados e municípios contavam, à época da normatização em nível federal, com sistemáticas próprias de transação tributária, em regra muito distantes do regime da Lei nº 13.988/20, dedicadas principalmente a hipóteses vinculadas a ações antiexacionais, i.e., ao contencioso tributário.
Por outro, a partir do presente ano, os regimes de transação tributária instituídos pelos entes estaduais e municipais seguiram diretrizes muito semelhantes à federal, como ocorreu no município e no estado de São Paulo por intermédio da edição das Leis nº 17.324/20 e 17.293/20.
Portanto, hoje, coexistem dentro do espaço de conformação permitido pelo art. 171 do CTN modelos díspares entre si, que nos conduzem a algumas considerações sobre as possíveis modelagens da transação tributária nas esferas estadual e municipal.
A primeira diz respeito à conformação desejada por estados e municípios em relação às hipóteses de cabimento da transação. Na legislação vigente, é possível vislumbrar duas principais categorias: modelos fechados e abertos de transação.
Os modelos fechados compartilham como característica principal a prévia e exauriente delimitação normativa das hipóteses de cabimento da transação.
Como exemplo, cite-se o modelo adotado pelo estado do Rio Grande do Sul nos arts. 130 a 133 da Lei nº 6.537/73, ainda não regulamentado pelo Poder Executivo.
Em síntese, no referido estado, a celebração da transação tributária é possível em dois casos, ambos condicionados ao pagamento à vista do crédito: (i) opção, pelo devedor, por não interpor recurso contra sentença de improcedência em ação ajuizada a fim de desconstituir o crédito; e (ii) não oposição de embargos à execução fiscal e satisfação do crédito durante o respectivo prazo judicial.
Também a lei do estado do Amapá (Lei nº 400/97) delimita previamente as hipóteses de transação tributária aos seguintes casos: (i) existência de sentença judicial ou acórdão reconhecendo o direito do contribuinte à restituição ou compensação de ICMS e (ii) renúncia, pelo contribuinte, ao correspondente a ao menos 50% do valor do crédito a que tem direito.
No estado do Espírito Santo (Lei nº 10.869/18), a transação é restrita à extinção de crédito tributário mediante utilização (i) de saldo credor acumulado de ICMS e (ii) de valores referentes a créditos de ICMS reconhecidos por sentença judicial transitada em julgado proferida contra o ente.
Por sua vez, o modelo federal de transação por adesão no contencioso enquadra-se, de certa forma, nessa categoria. Apesar da delegação conferida por lei à Administração tributária para publicação de editais, não pode o administrador se desviar do quadro normativo existente, ainda que vislumbre ser oportuna e conveniente a celebração de transação em hipótese não compreendida em edital.
Já nos modelos abertos, a lei delimita de forma não exaustiva as hipóteses de cabimento da transação, conferindo ao administrador maior margem de apreciação sobre a conveniência e a oportunidade da celebração de acordo no caso concreto.
A título exemplificativo, no estado de Goiás, a Lei nº 16.675/09 condiciona, de forma genérica, a celebração de transação à existência de litígio judicial. Em sentido semelhante, a legislação do estado de Minas Gerais (Lei nº 6.763/75 e Decreto nº 41.417/00), embora apresente textura menos aberta, possibilita a celebração de acordo quando, em razão de precedentes judiciais ou da complexidade fático-jurídica ou exclusivamente jurídica da matéria discutida, houver fundada dúvida quanto ao êxito da ação, conceito indeterminado a ser preenchido pelo administrador.
Seguindo lógica similar, no município do Rio de Janeiro a Lei nº 5.966/15 permite a transação sobre “matéria de fato sobre a qual haja controvérsia” ou “interpretação da legislação relativa a obrigação tributária conflituosa ou litigiosa, no todo ou em parte”.
O segundo ponto digno de destaque conecta-se às concessões recíprocas possíveis, que podem ser predeterminadas em lei ou, ao contrário, decididas no caso concreto. Três caminhos são possíveis nessa matéria: a predefinição total, a parcial e a ampla discricionariedade do administrador.
Como exemplo de predefinição absoluta, no estado do Rio Grande do Sul, a literalidade do texto da Lei nº 6.537/73 indica estar o administrador vinculado a um percentual específico de desconto na multa.
Outros regimes vinculam o administrador a patamares máximos, como o modelo de transação federal (arts. 11, §§ 2º e 3º, 17, § 2º, e 25 da Lei nº 13.988/20). Entre um e outro modelo, há textos normativos em que o desconto se vincula a um sistema de cálculos, a exemplo do estado de São Paulo, no qual a avaliação do grau de recuperabilidade do débito considera diversos fatores, como as garantias ofertadas pelo sujeito passivo (art. 54, V, da Lei n. 17.293/20), e reflete no desconto a ser concedido ao final pela Fazenda Pública.
Destaca-se, ainda, o interessante modelo adotado pelo município de Blumenau (Lei nº 8.532/17), recentemente vencedor do Prêmio Innovare, que abriga um sistema de pontuação, com base em múltiplos fatores, tais como o tempo de duração da demanda, para apuração do percentual máximo de desconto a ser ofertado ao sujeito passivo.
Em relação ao último caminho, são exemplos de modelos em que as concessões possíveis não são delimitadas por lei aqueles adotados pelos estados de Minas Gerais e Goiás.
Por fim, outro aspecto relevante para reflexão repousa no órgão competente para o exame da transação. A criação de Câmaras de Transação compostas por procuradores e/ou auditores é uma interessante via, adotada, v.g., pelo município de Blumenau.
Já na sistemática da Lei nº 13.988/20, a assinatura do termo de transação individual incumbe, via de regra, às chefias regionais da PGFN (artigos 44 a 47 da Portaria PGFN nº 9.917/20).
No estado de São Paulo, de maneira semelhante à regra federal, a decisão incumbe ao procurador chefe da dívida ativa (art. 4º, § 1º, da Resolução PGE nº 27/20).
Não obstante a variedade acerca da autoridade responsável pelo exame e celebração do termo, o ponto crucial reside em garantir a independência dos procuradores envolvidos na transação, bem como reforçar que eventual responsabilização apenas decorra de dolo ou fraude, seguindo o exemplo da União (art. 29 da Lei nº 13.988/20) e do município de Blumenau (art. 6º, parágrafo único, da Lei nº 8.532/17). A correta compreensão da transação pelos órgãos de controle é de suma importância para o sucesso do instituto em nível estadual e municipal.
Como visto, a transação tributária pode assumir inúmeras facetas. O marco federal, embora de inegável relevância, não corresponde a um caminho único para os demais entes.
Há aspectos previstos na Lei nº 13.988/20 muito positivos e que, independentemente do modelo de transação adotado, podem ser replicados, como a vedação de celebração de transação com o devedor contumaz e a possibilidade de proposição de temas por representantes da sociedade civil.
Outras, como a restrição da transação à modalidade de adesão – no caso da transação no contencioso – e as limitações valorativas impostas às iniciativas individuais, devem sofrer reflexão mais profunda.
Sem pretensão de esgotamento, algumas observações devem ser consideradas na escolha por replicar o regime da Lei nº 13.988/20. A uma, a adoção de modalidade semelhante à transação na cobrança da dívida ativa permite que estados e municípios afastem as constantes pressões pela edição de sucessivos programas de remissão e anistia, possibilitando o equacionamento de débitos de forma permanente e isonômica, à luz do respectivo grau de recuperabilidade.
Esse possível resultado é apto a restabelecer um cenário mais adequado de conformidade voluntária, extinguindo o processo disruptivo criado pela expectativa de edição de programas de anistia e remissão de natureza transitória, embora de realidade cíclica.
A duas, os entes estaduais e municipais devem, antes de replicar o modelo federal, considerar suas limitações de acesso a informações fiscais e suas restrições tecnológicas.
A União, hoje, conta com avançado sistema de cálculo do grau de recuperabilidade do crédito e, como efeito, dos descontos conferidos ao sujeito passivo, baseado nos múltiplos documentos fiscais a que tem acesso.
Além disso, o ente federal tem condições mais favoráveis para desenvolver sistemas de jurimetria com vistas à classificação de teses e risco dos processos. Estados e municípios devem ter consciência de suas próprias deficiências para que a normatização da transação não se transforme em frustração, mas sem que tampouco o medo nesse tema os paralise.
A três, a sistemática de transação por adesão, apesar de garantir isonomia entre os sujeitos passivos, não permite maior interlocução com a outra parte, tornando mecânico um instituto essencialmente dialógico. Esse viés deve ser ponderado ao se eleger um sistema de transação majoritariamente concentrado na publicação de editais.
Por fim, conforme visto, o rating do crédito pode ser um critério relevante para o cálculo do montante do desconto a ser concedido ao sujeito passivo, mas também pode assumir, tal qual ocorre na União, parâmetro para acesso do devedor ao próprio desconto em si.
A nosso ver, ao formular um regime de transação, os entes devem pensar previamente nos possíveis efeitos reflexos relacionados à conformidade, a exemplo de planejamentos voltados à modificação do rating atribuído ao crédito.
Importante frisar que tal assertiva não implica, de modo algum, a defesa do afastamento da transação tributária. Apenas se chama atenção para a necessária reflexão sobre os critérios de rating a serem adotados e sua abrangência, de forma que não sejam criados, inconscientemente, incentivos contrários à conformidade no campo tributário.
*Fonte: jota.info
JÚLIA SILVA ARAÚJO CARNEIRO – Procuradora do estado do Rio de Janeiro.