O CBS e uma reforma tributária para o capital no século XXI
1. Um IVA, um problema
O projeto da contribuição sobre bens e serviços (CBS) está na mesa. Um IVA federal que promete:
a) simplificação, com o fim das contribuições PIS e Cofins;
b) alíquota a princípio uniforme de 12% sobre a receita bruta e acréscimos;
c) calculado “por fora”, o que confere maior transparência para o cidadão, e exclusão dos tributos formadores do preço do quantum debeatur;
d) plena base de creditamento;
e) desoneração das exportações;
f) arrecadação por meio de documento unificado; etc. Os benefícios desta proposta, de um ponto de vista isolado das demais relações macroeconômicas, são certamente um avanço.
Mas, na totalidade destas relações, esta é a reforma desejada para um país caracterizado pela baixa formação de poupança doméstica e por uma alta carga tributária sobre o consumo? O consumidor final, dependente da renda do trabalho, na sua maioria, não será afetado por um efeito inflacionário, sobretudo do ponto de vista dos serviços, setor terciário que representa em média 70% do PIB?
Há, pois, um problema grave a ser enfrentado: a regressividade do sistema, que tributa mais o consumidor final em benefício da desoneração de outras riquezas, e assim concentra a renda. Um problema que demanda uma proposta para tributar o capital no século XXI, a partir de princípios que a nossa Constituição já traz.
2. Um problema, uma proposta
A ideia central deste texto é propor mudanças infraconstitucionais no sistema tributário brasileiro que respondam aos problemas macroeconômicos do país, como a queda da taxa de investimento, o baixo nível de poupança e o escalonamento do desemprego.
Isto porque talvez a reforma tributária possível não seja a constitucional, e este é o problema de se insistir nela. Mas uma reforma infraconstitucional decerto é mais fácil de ser aprovada no congresso.
Além do mais, nossa Constituição possui princípios tributários que, se bem aplicados, podem dar uma resposta rápida e eficaz contra a queda na demanda e no investimento privados, retomando o quanto antes o emprego e a atividade econômica.
E que mudanças são estas? Essencialmente:
a) reduzir a pressão fiscal sobre o consumo, destino de quase toda renda do trabalho, o que significa levar ao limite do realizável a redução do PIS e da Cofins em vez de unifica-los com uma alíquota maior, e submeter o IPI e o ICMS ao princípio da seletividade, efetivamente, desonerando ao máximo os bens essenciais à população; e
b) aumentar a tributação sobre o patrimônio e a renda do capital, o que significa elevar progressivamente as alíquotas de IRPF-distribuição, IRPF-ganho-de-capital, IPVA, IPTU e ITCMD, conforme o princípio da capacidade contributiva de cada cidadão.
Para nenhum destes casos é preciso alterar a Constituição ou elevar a carga tributária dos atuais 34% do PIB. O que se projeta, em última análise, é a redistribuição da pressão fiscal na sociedade brasileira, privilegiando a renda do trabalho em detrimento da renda ou proventos do capital especulativo, rentista ou ocioso. Estas são indubitavelmente as condições para combater a concentração de renda e o aumento da desigualdade social no país.
3. Uma proposta, uma lição keynesiana
Uma proposta de reforma tributária não pode ser dissociada das questões maiores como inflação, hiato de produto, taxa de desemprego etc. Pois, a depender de como o sistema tributário é desenhado, fica claro que:
a) os cidadãos perdem ou ganham poder de compra;
b) as empresas diminuem ou aumentam a participação na formação bruta de capital fixo;
c) os investidores têm um menor ou maior retorno na produção ou nos serviços em relação ao retorno dos títulos públicos; ou
d) contrai-se ou expande-se a oferta de crédito no sistema financeiro (razão que faz da CPMF uma arma de destruição em massa).
Em todos estes casos, a pressão fiscal exercida pode definir a oportunidade de valorizar o capital investido. A Curva de Laffer é uma representação gráfica disto.
Então, por mais importante que seja reduzir o custo de conformidade das empresas, o número de litígios, o tempo gasto no cumprimento de obrigações acessórias ou a quantidades de hipóteses tributárias vigentes, uma reforma tributária deve olhar acima de tudo para a totalidade macroeconômica, em vez de se fixar nos efeitos microeconômicos que poderá produzir.
Daí a lição keynesiana de se inverter a trilogia clássica oferta-procura-preço para renda-consumo-poupança-investimento. A proposta de reforma que se concentra na curva de oferta, pois dela surgiria sua própria procura, deve ceder lugar para uma proposta que se preocupe com a curva de demanda, procurando aumentar a renda dos cidadãos, na sua maioria trabalhadores.
Afinal, embora persista o discurso que faz do corte das despesas públicas a âncora fiscal para se manter a Selic em 2%, o que em tese diminui o custo dos títulos (sobretudo os juros longos) para o financiamento da dívida do Estado, tudo indica que uma economia galvanizada pela demanda doméstica é a única forma do Brasil retomar o seu rumo e sair do cenário de 12% de desemprego, 30% de capacidade instalada ociosa e um crescimento médio de 2% ao ano.
E este já era o cenário antes da pandemia, lembrando que o PIB caiu 1,5% no primeiro trimestre de 2020. É, pois, no receio de um certo positivismo levar o economista a enxergar apenas a carga tributária de 34% do PIB, desejando reduzi-la sem se atentar para o princípio da capacidade contributiva, ou levar o tributarista a se ater a denúncia das inúmeras hipóteses tributárias, ambicionando unifica-las sem se atentar para os efeitos inflacionários, que se propõe mudanças infraconstitucionais que aumentem o nível de consumo e de formação da poupança doméstica, sem o que não há investimento, tampouco uma retomada sustentável da economia.
4. Uma lição keynesiana, uma reforma infraconstitucional
Se o Brasil busca um crescimento sustentável, sem o que a pecha de país em desenvolvimento nos seguirá, não há dúvidas de que uma proposta de reforma deve tanto estimular o consumo das famílias, responsável por 63% do PIB, como o investimento nas atividades da economia real.
Estes motores dependerão de relações tributárias mais progressivas, conforme o princípio da capacidade contributiva, cujo efeito inexorável é o deslocamento da maior parte da pressão fiscal sobre a renda do trabalho para a renda do capital e o patrimônio adquirido, sobretudo o herdado; em todos os casos, mediante alíquotas progressivas.
Ou seja, reduzem-se os tributos que oneram a renda do trabalho, na sua totalidade voltado para o consumo (PIS, Cofins, IPI e ICMS), daí o baixo nível de poupança doméstica, em direção aos tributos que oneram o capital e o patrimônio (IRPF-ganho de capital, IRPF-distribuição, IPVA, IPTU e ITCMD). Estas alterações, importante que se diga, são feitas por leis ordinárias e resolução do senado federal.
Uma proposta de reforma deve estar atenta para a formação de uma poupança doméstica, que só virá com um crescimento econômico estimulado pelo poder de compra dos cidadãos e por um rendimento médio das atividades empresariais acima do rendimento médio dos títulos públicos ou dos ganhos de capital.
Afinal, do que adianta simplificar a tributação, quando, conforme o IBGE, 100 milhões de brasileiros sobrevivem com R$ 413 reais ao mês, sendo que, no ato de consumo, em média 50% do preço são tributos? Ou do que adianta reduzir o custo de conformidade e conferir desonerações fiscais que impactam o equilíbrio orçamentário quando a Selic-meta costuma atingir, neste país, dois dígitos?
Convém lembrar que, no primeiro sinal de depreciação dos ativos de risco, a exemplo dos que compõem os mercados brasileiros de títulos e de capitais, real e commodities, respectivamente, o capital estrangeiro vai buscar a manutenção do seu poder de compra nos títulos soberanos dos EUA.
Um sistema tributário progressivo é capaz de garantir o poder de compra na sociedade brasileira, mas para isto se deve pressionar a renda e os proventos do capital especulativo ou rentista, como ganhos de capital ou renda fixa, bem como aumentar a tributação sobre o patrimônio, principalmente o herdado, visto que “forte concentração do capital explica-se especialmente pela importância da herança e de seus efeitos cumulativos”.
5. Uma reforma infraconstitucional, um sistema progressivo para o capital no século XXI
Uma reforma infraconstitucional que estabeleça relações tributárias mais progressivas é, talvez, a única ferramenta para galvanizar a economia brasileira. Experiências tributárias do pós-guerra comprovam isto, quando os países europeus empregaram alíquotas progressivas de IR que ultrapassavam 50%, 60% e 70%.
E não somente, mas uma elevada tributação sobre heranças, cujas alíquotas estão vigentes até hoje. Entre as décadas de 40 e 70 a Europa viveu o seu maior período de crescimento, com uma média de 4%, e de menor desigualdade social.
Estas relações fiscais progressivas no continente europeu foram a pedra-angular para que se elevasse a renda per capita de seus cidadãos e, por consequência, a propensão marginal ao consumo no mercado interno, sem o que não haveria a formação de uma sólida poupança doméstica.
Estes resultados não foram um acaso ou uma fatalidade das forças individualmente interessadas do mercado, mas produto do desenho institucional que levou em conta os efeitos macroeconômicos que buscava atingir. Não por acaso, os países com os melhores IDH são também os que menos tributam a renda do trabalho e os que mais oneram a renda do capital.
O que se alcança com esta proposta de reforma tributária infraconstitucional é o que os economistas chamam de efeito multiplicador do aumento do poder de compra dos cidadãos.
Manter o sistema profundamente regressivo como o que temos, ainda que o simplifique, não cessará de reproduzir as causas que concentram a renda e, por conseguinte, aumentam a desigualdade social e regional neste país.
O Brasil traz na relação tributo/PIB uma carga tributária de apenas 6,5% sobre rendas, lucros e ganhos de capital, e 15,4% sobre bens e serviços, daí possuir o sistema tributário mais regressivo da OCDE, ocupando a posição 79º no ranking do IDH.
Esta pirâmide da tributação sobre a renda do trabalho e a renda do capital precisa ser imediatamente invertida, não necessitando para tanto de uma PEC ou de reformas constitucionais, pois se alcança este importante feito, como foi demonstrado, através de leis ordinárias, resolução do senado federal e, principalmente, aplicando os princípios já consagrados na Constituição, como o da seletividade e da capacidade contributiva. Se não for assim, as palavras John Maynard Keynes ganharão ainda mais peso, e no longo prazo é possível que todos estejamos, como sociedade, mortos.
*Fonte:jota.info