Lei não torna constitucional cobrança de ISS por município incompetente
Em 2016 foi alterada, pela Lei Complementar 157/16 (LC 157/16), a sujeição ativa e o aspecto espacial do Imposto Sobre Serviços (ISS). Na prática, o ISS que era devido ao município onde prestado o serviço passou a ser cobrado pelo município do domicílio do tomador do serviço com relação aos serviços constantes dos subitens nºs 4.22 (planos de medicina de grupo ou individual e convênios), 4.23 (outros planos de saúde), 5.09 (planos de atendimento e assistência médico-veterinária), 15.01 (administração de fundos quaisquer, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres), 10.04 (agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de leasing, franchising e factoring) e 15.09 (arrendamento mercantil — leasing).
Essa mudança foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal na ADI 5.835 e até o momento está suspensa por força da medida cautelar concedida pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, para quem a LC 157/16 padece de indeterminações normativas que prejudicam a aplicação da norma para disciplinar a cobrança do ISS, ensejando insegurança jurídica e conflitos de competência entre mais de um município sobre o mesmo fato gerador. O relator apontou a falta de identificação do “tomador de serviços” como uma dessas indeterminações que inviabilizam a cobrança do imposto.
Na tentativa de superar a decisão do STF, o Congresso Nacional recentemente editou a LC 175/20 buscando: 1) definir quem supostamente seria o tomador do serviço em cada caso (artigo 14); 2) impor aos contribuintes a obrigação de desenvolvimento de um “sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional” para apuração e recolhimento do ISS no município do tomador (artigo 2º); 3) determinar a criação de um Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA) para “regular a aplicação do padrão nacional da obrigação acessória” (artigos 9º e 10) e definir o “leiaute, o acesso e a forma de fornecimento das informações” relativamente ao sistema (artigo 10, § 1º); 4) estabelecer forma de repartição de receitas entre os municípios do prestador e do tomador pelo prazo de dois anos (artigo 15). Em 2021, o produto da arrecadação do ISS devido nesse caso será destinado 33,5% ao município do local do estabelecimento prestador e 66,5% ao município do tomador. Em 2022, a proporção passa para 15% e 85%, respectivamente. Em 2023, o valor pertencerá exclusivamente ao município do domicílio do tomador; por fim, 5) definir que os serviços de agenciamento, corretagem e intermediação de contratos de leasing/franchising/factoring voltariam a ser tributados no local do estabelecimento prestador (artigo 16).
Pela leitura dos novos dispositivos, não há dúvida de que a LC 175/20 parte da premissa de que é constitucional a alteração na tributação do ISS realizada pela LC 157/16.
Diante desse quadro normativo pretendemos abordar a questão sob quatro ângulos distintos: 1) a subsistência da inconstitucionalidade relacionada à impossibilidade de alteração, por lei complementar, da sujeição ativa do ISS decorrente da competência constitucionalmente atribuída aos municípios (artigo 156, III, da CF); 2) a persistência de várias indeterminações normativas que mantêm a ineficácia técnica da sistemática instituída pela LC 157/16; 3) a ineficácia pragmática de ambas as leis complementares até a instituição do comitê gestor e o desenvolvimento dos sistemas; e 4) o surgimento de novas inconstitucionalidades decorrentes da edição da LC 175/20.
Quanto ao primeiro ponto, a LC 175/20 incorre no mesmo vício de inconstitucionalidade da LC 157/16 por violação ao artigo 156, III, da CF/88. Afinal, a nova lei complementar supôs que seria constitucional a alteração da competência tributária realizada pela LC 157/16 do município da prestação do serviço para o do domicílio do tomador/contratante.
Porém, não há falar em tributação no “destino” no caso do ISS quando no município do tomador não há qualquer resquício de prestação de serviço. Tome-se o exemplo de uma sala de cinema localizada em Brasília, ocupada exclusivamente por expectadores domiciliados em Goiânia que estavam a passeio na capital federal. Nesse caso, o fato de o serviço cinematográfico ter sido prestado a tomadores/contratantes domiciliados em Goiânia não muda o fato de a prestação ter ocorrido integralmente no Distrito Federal. Não há ficção jurídica possível que admita atribuir à Goiânia (em que não há qualquer réstia de serviço) a competência para a cobrança do ISS, sendo esse o grave problema de inconstitucionalidade incorrido pela LC 157/16.
Ao mudar a sujeição ativa do município da prestação do serviço/estabelecimento prestador para o do domicílio do tomador, a lei complementar usurpa a competência que a Constituição Federal, em seu artigo 156, III, da CF, outorga ao município em cujo território se desenvolve o serviço. É preciso observar que a lei complementar não tem a capacidade de tornar constitucional a cobrança de ISS por município absolutamente incompetente. A tentativa feita pela LC 175/20 de operacionalizar, no campo das receitas, a apontada inconstitucionalidade, por óbvio encontra vedação na mesma norma constitucional.
Quanto ao segundo ponto, nada obstante a tentativa da LC 175/20 de complementar (e, supostamente, constitucionalizar) a LC 157/16 com a definição dos tomadores, o novo diploma não trata das outras lacunas existentes, como é o caso dos diversos conceitos de domicílio fiscal, das situações de múltiplos domicílios e de operações feitas pela internet, de dispositivos móveis e do exterior, além de ter criado novas indeterminações e/ou antinomias.
De fato, tomando-se como exemplo o serviço de administração de fundos e consórcio em que o consorciado/cotista foi definido como o tomador, o que acontecerá se esse residir no exterior? E se houver mais de um domicílio? Qual prevalece? O domicílio civil? O domicílio eleitoral? O domicílio fiscal? Sendo o domicílio fiscal, o declarado no imposto de renda (esfera federal)? O utilizado para fins de cobrança de IPTU (esfera municipal), de IPVA (esfera estadual), de ITR (esfera federal)? O declarado no momento do envio dos dados cadastrais ao grupo de consórcio? A partir de qual critério? Nenhuma das duas leis complementares respondem a esses questionamentos.
A única definição que se tinha era aquela relativa ao serviço de leasing em que o §3º do artigo 6 da LC 157/16 determinava o domicílio conforme informação prestada pelo tomador no contrato. Ocorre que essa disposição foi revogada pela LC 175/20, de modo que a indeterminação passou a atingir, também, o serviço de leasing.
Além da problemática envolvendo a multiplicidade de domicílios, há grande dificuldade prática para os administradores dos fundos de investimento de distribuição de cotas por conta e ordem. Isso porque nesses casos há a figura de um agente intermediário (o distribuidor) que assume todas as responsabilidades do investimento e faz a interface com o cotista. Não há relação entre o cotista e o administrador.
Relativamente aos planos de saúde, a LC 175/20 definiu que o tomador pessoa física é o “contratante do serviço” (artigo 14, §5º), porém, ao mesmo tempo, fixou como tomador a “pessoa física beneficiária” (artigo 14, §6º). Contudo, nos planos de saúde coletivos o contratante não necessariamente é o beneficiário, o que enseja dúvida acerca do município competente para a cobrança, se o do contratante (a empresa) ou o do beneficiário (pessoa física).
Esses são apenas alguns exemplos das várias indeterminações que persistem mesmo após a edição da LC 175/20, o que impede a cobrança do ISS pela sistemática da LC 157/16, sob pena de violação ao artigo 146, I da CF/88.
Em terceiro lugar, ainda que não se cogitasse das inconstitucionalidades acima, a norma geral da LC 157/16, mesmo complementada pelas disposições da LC 175/20, permanece incorrendo em ineficácia pragmática. É que o sistema de padrão unificado a ser desenvolvido pelos contribuintes de acordo com o leiaute estabelecido pelo comitê gestor é condição de eficácia para o recolhimento do ISS nos moldes preconizados pela LC 157/16.
Observe-se que um dos principais argumentos levantados pelos contribuintes e que levou à concessão da medida cautelar na ADI 5.835 foi o de que a ausência de padronização das obrigações acessórias impossibilitava o cumprimento da LC 157/16, considerando que cada município estava legislando de modo diverso, ensejando conflitos de competência e insegurança jurídica.
Portanto, a LC 157/16 permanece ineficaz até que haja efetiva instituição e funcionamento tanto do comitê gestor quanto do sistema de recolhimento. Prova disso é que ela mesma postergou a apuração e recolhimento do ISS de janeiro, fevereiro e março de 2021 para o 15º dia do mês de abril daquele ano, na expectativa de que, até lá, sejam criados/instituídos/desenvolvidos o comitê gestor e o(s) programa(s) de recolhimento sem os quais não há segurança/padronização que permita ao contribuinte e fisco cumprirem com suas respectivas obrigações.
Em quarto lugar, a constitucionalidade da LC 175/20 é em si discutível por outras razões, além daquelas declinadas em face da LC 157/16 na ADI 5.835.
Há dúvida razoável sobre a constitucionalidade da imposição, pela União, de obrigação ao contribuinte para fins de desenvolvimento de sistema unificado de declaração/pagamento do ISS. É que, ao assim proceder, a LC 175/20 estabelece uma obrigação em concreto (destinada ao contribuinte), ao invés de prever normas gerais (destinada aos legisladores municipais), o que ofende o âmbito material de competência da lei complementar (artigo 146, III, b da CF/88) e a competência tributária dos municípios (artigos 30, III, c/c 156, III, da CF/88). Isso tudo sem mencionar a eventual ofensa à proporcionalidade por ser o contribuinte — e não o Fisco — obrigado a arcar com o ônus de desenvolver sistema para que o Estado exerça seu poder-dever de cobrar tributos.
Além disso, o curioso sistema de repartição de receitas previsto no artigo 15 da LC 175/20 viola o princípio da autonomia municipal ao interferir com a destinação financeira do ISS cuja instituição/arrecadação competiria exclusivamente ao município no âmbito do qual ocorrido o evento serviço (artigo 30, III, c/c 156, III, da CF/88), bem como ofende o artigo 146 da CF/88 ao dispor sobre repartição de receitas que não é matéria afeta ao legislador complementar e sim ao legislador constitucional, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal (v.g. ACO 571 AgR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 03/04/2017 e ADI 4628, rel. min. Luiz Fux, Plenário, DJ 24/11/2014).
Em conclusão, a edição da LC 175/20 não resolveu os problemas de inconstitucionalidade existentes na LC 157/16, mas, sim, os agravou, tudo a indicar a manutenção do quadro que ensejou a concessão de liminar na ADI 5.835 que esperamos seja confirmada em julgamento de mérito pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
*Fonte: Conjur
Daniel Corrêa Szelbracikowski é mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Rhuan Rafael Lopes de Oliveira é advogado.