Internet das coisas e controvérsias tributárias
Ainda em 2016, líderes mundiais se reuniam para realização da edição do Fórum Econômico Mundial daquele ano, cujo tema era a “Quarta Revolução Industrial”. Desde então, muito se fala da proximidade de uma rápida evolução tecnológica capaz de nos conduzir para uma nova realidade transformadora das relações pessoais, de trabalho e da vida como um todo.
Na prática, após quase 5 anos da ocasião em que talvez se falou pela primeira vez em quarta revolução industrial, de fato, estamos diante de avanços tecnológicos transformadores de nosso cotidiano, proporcionando uma nova realidade onde as interações não se limitam mais a pessoas, mas passaram a englobar também coisas ou objetos, que se tornam cada vez mais inteligentes e funcionais, capazes de transmitir dados, trocar e processar informações.
Exatamente nesse ponto que entra em cena talvez um dos maiores marcos dessa nova revolução, o que se convencionou chamar de Internet das Coisas (“IoT”), tecnologia que viabiliza a integração e conectividade de máquinas, aparelhos, eletrodomésticos e outros objetos do cotidiano com a internet, possibilitando a transmissão de dados, monitoramento, troca de informações e uma infinidade de outras facilidades inerentes à conectividade de um dispositivo à internet.
No Brasil, importa-nos lembrar que no contexto da evolução dessa tecnologia, foi recentemente editado o Decreto Federal nº 9.854/2019, que instituiu o denominado Plano Nacional de Internet das Coisas, cuja finalidade, segundo seu artigo primeiro é implementar e desenvolver a IoT no Brasil, com base na livre concorrência e na livre circulação de dados e com observância das regras de segurança da informação e de proteção de dados pessoais.
O aludido Decreto também define que se considera IoT “a infraestrutura que integra a prestação de serviços de valor adicionado com capacidades de conexão física ou virtual de coisas com dispositivos baseados em tecnologias da informação e comunicação existentes e nas suas evoluções, com interoperabilidade”.
Todo esse avanço tecnológico, a implementação de suas funcionalidades e o perfeito aproveitamento por parte de seus usuários, entretanto, só é viável por meio de uma complexa gama de negócios jurídicos simultâneos, envolvendo compra e venda de bens, prestação de serviços, licenciamento de softwares, exploração de serviços de telecomunicação, entre outros.
Nesse contexto, dentro de um sistema tributário nacional arcaico, que não acompanhou a evolução tecnológica trazida pela dita quarta revolução industrial e nem mesmo preocupou-se em repensar a dicotomia bens e serviços para fins de tributação, torna-se um desafio complexo buscar o mínimo de segurança jurídica para aqueles que pretendem explorar as tecnologias inerentes a esse movimento, tendo em mente, essencialmente, a sanha arrecadatória dos entes fiscalizadores estatais.
Sobre esse aspecto, sem a pretensão de ser exaustiva, o objetivo dessa análise é ponderar, no contexto do ICMS e do ISS, sobre possíveis aspectos controversos da tributação no âmbito da internet das coisas.
Nessa linha, cabe-nos primeiramente estabelecer eventual impacto da tecnologia embarcada, na circulação de mercadorias ou objetos inteligentes, quanto à incidência do ICMS.
Nos dias atuais, nos parece difícil identificar bens de consumo, como automóveis, máquinas, eletrodomésticos, telefones celulares, relógios, entre outros, que não sejam acompanhados de funcionalidades fruto da tecnologia neles embarcada, viabilizada por meio de softwares desenvolvidos especificamente para tal finalidade.
Entretanto, nos parece que tal fato em nada altera a qualificação desses bens, quando colocados no comércio, como mercadorias para fins de incidência do ICMS, tendo apenas e tão somente a particularidade de disporem de um maior valor agregado consistente na tecnologia neles embarcada.
Ainda que se cogite que no contexto da comercialização desses bens, há também um software que lhe agrega outras funcionalidades, o fato é que tal software é parte integrante do bem comercializado e tem sua operação integralmente dedicada aquele bem, sem existência individualizada em relação ao bem a que serve, tornando-os um só bem objeto de mercancia, sujeito, assim, ao ICMS.
Portanto, não caberia, em princípio, segregar o carro ou a geladeira e o software neles embarcado, para fins de tributação apartada no que toca o ICMS ou ISS, o que traria nesse cenário e em relação ao software, toda a complexidade do conflito de competência que vem cercando a tributação inerente a essa atividade.
De fato, nos parece que em tais situações, eventual definição de competência tributária entre ICMS e ISS não seria tarefa das mais complexas. Contudo, o dito avanço tecnológico da IoT, passou a potencializar essas situações, a ponto de embarcar em tais bens funcionalidades outras como monitoramento e processamento de informações e dados para diversos fins, realização de diagnósticos complexos, chamadas inteligentes, e até mesmo a realização de atividades corriqueiras do dia a dia, como a reposição automática de bens esgotados em uma geladeira por meio de compras via internet previamente programadas.
Em função dessa realidade, passam a surgir, novamente, questionamentos acerca da possibilidade de as funcionalidades agregadas ao bem serem consideradas prestação de serviços e, em caso positivo, a possibilidade de se cogitar uma tributação segregada entre mercadoria e o serviço ou utilidade ofertada.
Nos parece que o ponto de partida para reflexão acerca dessa potencial controvérsia, necessariamente, envolve a própria definição do aspecto pessoal da hipótese de incidência do ISS e a necessidade da existência de um efetivo prestador de serviço para fins de se cogitar determinada atividade como tributável pelo imposto de competência municipal.
De fato, não nos parece viável admitir que serviços sejam prestados por máquinas ou equipamentos, há que haver, nesse contexto, a figura do prestador de serviço, sem o qual carece a regra matriz de incidência tributária, do seu aspecto pessoal.
A controvérsia estaria possivelmente resolvida nas situações em que, essencialmente, as funcionalidades embarcadas em um bem operassem meramente de forma passiva, automatizada e previamente programadas, na medida em que eventual inteligência artificial embarcada em um bem não poderá resultar, automaticamente, a nosso ver, na prestação de um serviço.
Contudo, sabe-se que, atualmente, tais situações vão além. Há, por exemplo, casos em que dados colhidos a partir de um maquinário que opera na semeadura de uma plantação, são processados em centrais especializadas e utilizados para determinação da quantidade de irrigação necessária em função das condições de clima e meteorologia.
Estaríamos, portanto, diante de verdadeira prestação de serviços envolvendo o processamento de dados, monitoramento e análise climática executadas pela central especializada e não de uma atuação passiva da funcionalidade embarcada no maquinário.
Poder-se-ia cogitar então, nesses casos, um exemplo da verificação de negócios jurídicos simultâneos, antes por nós citada, envolvendo compra e venda do maquinário, sobre a qual incidiria o ICMS e uma prestação de serviços de monitoramento e análise climática, entre outras, sobre a qual incidiria o ISS.
Por outro lado, sabe-se que a solução a tal controvérsia poderia estar na delimitação de competências constitucionais do ICMS e do ISS e a atuação do legislador complementar nessas situações, explicitada na jurisprudência sedimentada pelo STJ, segundo a qual sobre operações mistas, assim entendidas as que agregam mercadorias e serviços, incide o ISS sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116 /03, e incide ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista.
Todavia, a nosso ver, o raciocínio ora tratado não se amolda perfeitamente à situação analisada, na medida em que não nos parece estarmos diante propriamente de operações mistas (prestação de serviços com fornecimento de mercadorias ou vice-versa), mas sim, como antes ressaltado, de relações mais complexas, por vezes envolvendo mais de um contrato. Admitir o contrário, nos levaria a defender que a venda do maquinário utilizada no exemplo mais acima, encerraria tão somente uma prestação de serviço prevista na lista de que trata a LC 116 /03, qual seja monitoramento e análise climática.
Daí porque, há que se entender nessas situações e mesmo que não haja necessariamente instrumentos contratuais segregados, que os negócios jurídicos, embora conexos, são distintos e independentes, ou seja, compra e venda do maquinário, sobre a qual incidiria o ICMS e uma prestação de serviços de monitoramento e análise climática, entre outras, sobre a qual incidiria o ISS.
Não se ignora, contudo, a dificuldade de se definir perfeitamente onde se alocar a base de incidência desses tributos, ou seja, qual a parcela tributável atinente ao ICMS e qual a parcela tributável atinente ao ISS.
Tal dificuldade se agrava, ainda, nos casos em que tal serviço, em um primeiro momento, tem seu custo assumido pelo vendedor do bem, por um período certo a partir da concretização da compra, devendo ser objeto de cobrança apenas após tal prazo. Nessa hipótese, como solução, poderia até mesmo se cogitar que a ausência de um preço efetivo pelo serviço, afastaria a tributação do ISS.
Contudo, nos parece que em tal situação, deve-se considerar que há na própria comercialização do bem um componente de preço que leva em conta a prestação de serviço por determinado período de tempo com os custos integralmente assumidos pelo vendedor do bem. Logo, seriam grandes os riscos de ignorar tal situação, ainda mais sabendo-se que o serviço e seus custos seriam futuramente repassados ao comprador, passado o prazo pactuado.
Portanto, observa-se um terreno fértil de controvérsias em situações cada vez mais cotidianas em que o uso da IoT mostra-se cada vez mais presente.
Há, assim, que se ponderar sobre a forma como os contratos são celebrados e seus preços são definidos, para que mantenha uma consistência entre valor do bem e prestação de serviços, especialmente para determinação de sua tributação, seja pelo ICMS, seja pelo ISS.
Se não bastassem todos esses elementos de controvérsia já tratados, há também a possibilidade de algumas funcionalidades no âmbito da IoT serem consideradas serviços de telecomunicações, para fins de incidência de ICMS.
Sobre esse aspecto, é importante destacar a definição conferida pelo Decreto Federal nº 9.854/2019, no sentido de que a IoT teria a natureza de um serviço de valor adicionado (“SVA”).
De fato, tal definição se mostra bastante relevante na medida em que, em uma primeira análise, poderia se partir dela para, objetivamente, concluir-se pela impossibilidade de tributação dessa atividade pelo ICMS – Comunicação.
Cabe lembrar que o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) editou há tempos a Súmula 334, para dispor que: “O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet”. O aludido enunciado, tem origem na emblemática discussão da tributação dos serviços de provimento de acesso à internet, onde se tomou como fundamento a distinção entre serviços de telecomunicação e serviços de valor adicionado, para se concluir que levando-se em conta que os provedores de acesso à internet por dependerem de um serviço de telecomunicação que lhes dá suporte, seriam configurados como SVA, o que implicaria a não incidência do ICMS-Comunicação.
Na prática, de fato, parece-nos que o aludido racional seria aplicável às atividades envolvendo a IoT, já que tal tecnologia também se vale de um serviço de telecomunicação que lhe dá suporte, para viabilizar as interações e conectividade máquina a máquina, o que inclusive justifica a classificação do próprio legislador no sentido de sua natureza de SVA.
Consequentemente, em princípio, estaria afastada a incidência do ICMS-Comunicação sobre tal atividade, muito embora não se ignore que nem sempre as autoridades fiscais se dão por vencidas e a despeito da aparente segurança conferida pelo legislador acerca da natureza jurídica das atividades envolvendo a IoT, acreditamos que a matéria não pode ser tida como totalmente definida em termos de tributação.
E assim acreditamos, inclusive, porque a já dita e contínua evolução tecnológica atrai para tal atividade novas funcionalidades ou avanços, fazendo com que eventual comunicação que a suporta não se restrinja à comunicação máquina a máquina, mas também envolva a análise, processamento ou monitoramento de dados e até mesmo passe a disponibilizar o serviço de comunicação entre usuário da máquina, aparelho ou bem com terceiros.
Diante dessas realidades, por exemplo, nos parece que a atividade se aproximaria mais de um serviço tributável, seja pelo ICMS-Comunicação, seja pelo ISS, o que traz para o contexto de seu exercício contornos e riscos de (mais um) potencial conflito de competência entre Estados e Municípios.
Além dos aspectos de ICMS e ISS abordados acima, essa nova realidade envolvendo IoT também traz potenciais discussões envolvendo PIS e COFINS.
Como se sabe, há dois principais regimes de incidência das contribuições, o regime cumulativo e o regime não-cumulativo. No regime cumulativo, o PIS e a COFINS incidem a uma alíquota conjunta de 3,65%, sem que haja possibilidade de desconto de quaisquer créditos. Já no regime não-cumulativo, o PIS e a COFINS incidem a uma alíquota conjunta de 9,25%, sendo possível descontar créditos em relação a certos custos e despesas incorridos.
Como regras, as pessoas jurídicas sujeitas ao regime do lucro real para fim de apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) ficam submetidas ao regime não-cumulativo do PIS e da COFINS.
No entanto, o artigo 8º da Lei n. 10.637 e o artigo 10 da Lei n. 10.833 estabelecem a aplicação do regime cumulativo, ainda que para pessoas jurídicas sujeitas ao regime do lucro real, em relação a, dentre outras situações, receitas decorrentes de prestação de serviços de telecomunicação, assim como em relação a receitas auferidas por “empresas de serviços de informática, decorrentes das atividades de desenvolvimento de software e o seu licenciamento ou cessão de direito de uso, bem como de análise, programação, instalação, configuração, assessoria, consultoria, suporte técnico e manutenção ou atualização de software, compreendidas ainda como softwares as páginas eletrônicas.”
Assim, a depender da forma como sejam caracterizadas as receitas decorrentes das atividades envolvendo IoT, poderia haver, ainda, impactos quanto ao tratamento de PIS e de COFINS sobre as receitas atreladas a tais atividades.
Também em relação ao contratante/adquirente dos produtos envolvendo IoT, a caracterização jurídica da contratação também pode gerar efeitos quanto à possibilidade ou não de creditamento das contribuições.
Portanto, vê-se que a IoT, dentre tantas outras inovações decorrentes da quarta revolução industrial, é mais uma atividade cujo o exercício carece da necessária segurança jurídica em termos de tributação, fruto do arcaico sistema tributário nacional, especialmente no que toca à tributação de bens e serviços, evidenciando nesse ponto a premente necessidade de uma reforma tributária.
*Fonte: jota.info
CATARINA RODRIGUES – Doutoranda e Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora dos cursos de especialização em Direito Tributário do IBET e da PUC/COGEAE. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SP.
DOUGLAS MOTA – Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e especialista em Direito Tributário pela PUC/COGEAE. Advogado.
GISELE BARRA BOSSA – Professora, Mestre e Doutoranda em Ciências Jurídicos-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado do Mestrado Profissional e do Grupo de Pesquisa de Tributação e Novas Tecnologias da FGV Direito SP.
ERIKA TUKIAMA – Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pela USP. Membro do Grupo de Pesquisa de Tributação da Economia Digital da FGV/SP.
DORIS CANEN – LLM em Direito Tributário Internacional pela King’s College London (Bolsista Chevening). Pós-Graduada em Direito Tributário pela FGV. Mestre e Bacharel em Direito pela UCAM. Membro do Grupo de Pesquisa de Tributação e Novas Tecnologias da FGV/SP.