Incoerências da legislação em relação às multas fiscais
É de conhecimento geral que as sanções têm um papel de extrema importância no Direito Tributário, na medida em que representam o meio pelo qual a Administração Pública impõe aos administrados, coativamente, o dever de cumprimento das obrigações tributárias, sejam as de cunho principal (pagamento de tributo) ou acessório (deveres instrumentais).
De fato, a compulsoriedade do pagamento do tributo tem sua expressão máxima na cominação de penalidades por parte do Fisco em caso de inadimplemento. E o racional se aplica de maneira idêntica às obrigações acessórias, que têm o objetivo de municiar os entes tributantes com informações para que a fiscalização ocorra de maneira adequada e célere.
Entretanto, a despeito da reconhecida relevância das normas sancionadoras, é evidente que a sua aplicação não é irrestrita, já que a imposição de sanções está (ou deveria estar) adstrita a limitações estabelecidas pelo próprio ordenamento jurídico, como já reconheceu o STF em diversas oportunidades (caso das ADIs nºs 551 e 1075-MC, por exemplo).
No Estado do Rio de Janeiro, a questão referente às penalidades por descumprimento de obrigações acessórias se tornou muito sensível aos contribuintes – especialmente os de grande porte – por conta de dispositivos contidos na Lei nº 2.657/96 que são dignos de severas críticas e servem de fundamento para cobranças abusivas.
Com efeito, a Lei nº 2.657/96 contém um festival de multas desmedidas, como é o caso, em especial, do seu art. 62-B, inciso II, que fixa uma multa pela omissão de dados ou pela indicação de informações incorretas em documentos fiscais. Tal penalidade é calculada não sobre o valor omitido ou indicado de forma equivocada, mas sim sobre o total das operações e prestações do serviço efetuadas no período, ou seja, assume a feição de uma “nova alíquota de ICMS” – já que incide sobre a sua base de cálculo.
Para definir o valor da multa, o legislador estadual utilizou um percentual, entre 0,25% e 1%, que incide sobre o “total de operações de saídas e prestações efetuadas no período”. Em contrapartida, o mesmo dispositivo também estabeleceu certos limites (“tetos”), de modo que as multas não ultrapassem os valores de 10.000 a 25.000 UFIR-RJ – a variação do percentual da multa e do seu “teto” depende de quantas intimações foram expedidas pelo Poder Público até a regularização da obrigação acessória.
De plano, já se poderia constatar a manifesta inadequação da norma sancionadora, uma vez que se utiliza de um percentual sobre o total das operações (movimentação econômica) do contribuinte como base de cálculo para a aplicação da multa pela indicação de um único dado incorreto ou omisso, o que foge por completo de qualquer noção de coerência e racionalidade, na medida em que a penalidade não guarda correspondência alguma com a infração cometida.
Ainda assim, poder-se-ia argumentar que a legislação estadual, a fim de evitar que a multa tomasse enormes proporções, estabeleceu alguns limites que vão até 25.000 UFIR-RJ.
No entanto, a própria legislação fluminense cuidou de relativizar os referidos limites, o que tem fomentado situações extremas para os contribuintes de grande porte no Estado.
Isso porque o art. 67, § 2º, da mesma Lei nº 2.657/96 afirma que os “tetos” previstos no citado art. 62-B não se aplicam às empresas cuja receita bruta anual ultrapasse 3.600.000 UFIR-RJ. Nesses casos, portanto, a multa passa a não ter qualquer limitador, permitindo a formalização de cobranças de dezenas ou centenas de milhões de reais, como tem feito a SEFAZ/RJ com seus principais contribuintes.
Imagine-se o seguinte caso: ao revisar a escrita fiscal de um grande contribuinte, que movimenta R$ 100 milhões por mês, o Fisco verificou que a empresa preencheu uma declaração com um único erro na apuração do seu saldo credor do período, que teria sido registrado em montante superior ao correto em apenas dez reais. Após ser intimado uma única vez para corrigir tal erro, a empresa transmite a declaração retificadora e paga o imposto eventualmente devido, regularizando a sua situação.
Nessa singela hipótese, em que o erro cometido foi de R$ 10,00 na contabilização do saldo credor pelo contribuinte, o Fisco estadual, a despeito da posterior regularização do equívoco, lavrará auto de infração exigindo o pagamento de multa de R$ 250 mil (0,25% x R$ 100.000.000,00).
Interessante notar que a multa seria aplicada mesmo em casos em que o contribuinte, por exemplo, tivesse registrado um saldo credor de ICMS a menor – ou seja, o próprio contribuinte se prejudicou em sua escrita –, pois a legislação é genérica e desvinculada da gravidade da infração e da própria existência de dano (ainda que indireto) ao Erário.
De fato, a referida multa isolada, por não guardar correspondência com o valor do tributo indicado no documento fiscal (e nem com o próprio dado omisso ou equivocado), gera situações absurdas, pois toma como base de cálculo o total das operações de saída e prestações de serviços de período, o que significa que, mesmo quando não há tributo a pagar registrado no documento fiscal, o contribuinte é penalizado sobre uma base de cálculo idêntica a do ICMS, o que não faz nenhum sentido.
E, como se sabe, um equívoco cometido na apuração de determinado mês acaba sendo refletido nos períodos subsequentes: ou seja, um singelo erro pode acabar gerando autuações vultosas, mesmo o dano ao Erário sendo mínimo ou até inexistindo.
Nesses casos, a penalidade precisa ter um limitador, de forma a evitar que fique em descompasso com a infração cometida. A legislação até prevê alguns “tetos”, mas o fato de não serem aplicados para empresas com receita anual superior a 3.600.000 UFIR-RJ, além de violar os princípios da razoabilidade e do não confisco, fere o princípio da isonomia, haja vista que a norma trata de forma diferente contribuintes que praticaram condutas de mesma gravidade relacionadas à mesma obrigação acessória.
Tais constatações se mantém mesmo diante do fato de o Plenário do STF, em agosto deste ano, ter finalizado o julgamento do RE nº 606.010, por meio do qual reputou como constitucional a multa pelo atraso na entrega da DCTF, equivalente a 2% por mês sobre os tributos informados na referida declaração, limitada a 20%.
Na oportunidade, o ministro Marco Aurélio consignou que a DCTF constitui o principal instrumento de lançamento de tributos federais, o que eleva sobremaneira o grau de reprovabilidade do atraso na entrega da declaração (de fato, a entrega em atraso da DCTF gera um considerável prejuízo ao Erário, situação que é bem diferente da indicação de simples dado incorreto que ainda pode ser sanado sem prejuízos).
Assim, a penalidade prevista pelo Estado do RJ em nada se assemelha com aquela chancelada pelo STF. Afinal, a legislação federal (a) definiu que a multa irá incidir sobre o valor dos tributos declarados em atraso (e não sobre a movimentação econômica do contribuinte); (b) limitou o valor da multa a 20% dos tributos declarados em atraso; (c) previu uma multa elevada em função da grave natureza da infração cometida.
Dessa forma, em última análise, poder-se-ia afirmar que se aplicássemos as premissas adotadas no RE nº 606.010/PR para a legislação fluminense, chegaríamos à seguinte conclusão: o racional chancelado pela Corte Suprema, no máximo, permitiria que a multa por erros ou omissões nas obrigações acessórias correspondesse a um percentual do montante escriturado equivocadamente ou omisso, o que ainda deveria vir acompanhado da estipulação de um limite. Nada mais.
Mas não é isso que se tem na Lei nº 2.657/96. Pelo contrário. O que se verifica, no trecho em que trata das multas fiscais, são disposições esquizofrênicas e sem qualquer coerência interna. Basta uma rápida leitura da Lei nº 2.657/96 para se chegar a essa conclusão. Mas o mais curioso é ver que todas as multas previstas na Seção IV do referido diploma, segundo o §3º do seu art. 67, não podem superar o valor de 180.000 UFIR por auto de infração, o que representa um limite importante. Contudo, esse limite não se aplica para a multa prevista no mencionado art. 62-B, o que nos conduz a uma única conclusão: o interesse do legislador foi além do caráter punitivo da sanção, pois passou a considerá-la como verdadeira fonte de arrecadação.
Os equívocos da legislação fluminense, realmente, saltam aos olhos do intérprete e precisam ser sanados, seja pelo Legislativo, seja pelo Judiciário.
Por fim, importante destacar que o tema ainda será revisitado no julgamento do RE n° 640.452/RO (Tema 487), ocasião em que o STF terá uma nova e valiosa oportunidade para estabelecer parâmetros constitucionais mínimos a fim de orientar ou limitar a atividade do legislador infraconstitucional na matéria.
*Fonte: jota.info
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