Preliminarmente, convém mencionar que, em minha avaliação, não há dúvidas de que o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), objeto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, é muito melhor do que todos os atuais tributos de consumo (também conhecido por tributos indiretos) que temos no país, quais sejam ICMS, ISS, IPI e PIS/Cofins.
Como entusiasta que sou do IBS, não poderia me calar frente a um grande equívoco apresentado no texto-base do que pode vir a ser a Lei Complementar do imposto, naquilo que se refere à materialidade do IBS no comércio internacional de bens materiais. Passemos à leitura do texto-base.
Logo no início, o texto-base da Lei Complementar estabelece que o fato gerador do IBS é o negócio jurídico oneroso (artigo 1, “caput”), o que é reforçado pela não incidência do imposto nas doações (artigo 2, III.).
A despeito da aparente clareza das referidas disposições, o artigo 8, tratando especificamente das transações internacionais, assim determina:
“Art. 8º O fato gerador ocorre, no caso de importação de:
I – bem material, no momento do desembaraço aduaneiro;”
Daí poderiam surgir duas interpretações: a primeira é no sentido de que o fato gerador não ocorre em qualquer desembaraço aduaneiro, mas sim naqueles em que há um negócio jurídico oneroso subjacente, em consonância com os artigos 1 e 2; a segunda, ainda que contradizendo os artigos anteriores, seria pela incidência do IBS em todo e qualquer desembaraço, independentemente do negócio jurídico realizado entre importador e exportador.
Essa dúvida é reforçada pelo artigo 13, que revela que sujeito passivo do imposto é “a pessoa natural ou jurídica que realize a entrada, no território nacional, de bem material ou a quem for disponibilizado bem imaterial de procedência estrangeira”.
Ora, será mesmo que os formuladores do texto-base iriam criar dois IBS diferentes? Um doméstico que incide apenas sobre negócio jurídico oneroso e um internacional que tributa qualquer importação – tanto onerosa (com cobertura cambial) quanto não onerosa (sem cobertura cambial)?
Os mais atentos diriam: não é possível, todo mundo sabe que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o caso TAM (Recurso Extraordinário nº 461968), definiu que o imposto previsto na importação não pode ser diferente do imposto previsto internamente.
Pois é, mas, por incrível que pareça, o texto-base do IBS pretende mesmo tributar qualquer importação, independentemente da onerosidade do negócio jurídico subjacente.
E tal afirmação pode ser feita a partir da análise da incidência do IBS nas importações indiretas, mais precisamente na modalidade conhecida por conta e ordem de terceiros.
Como é cediço, o STF, em meados deste ano, decidiu que, nas importações por conta e ordem, o ICMS importação deveria ser recolhido pelo adquirente, pois, embora ele não seja o importador, é quem adquire o bem (e, portanto, realiza a circulação jurídica da mercadoria).
O texto-base da Lei Complementar do IBS, no entanto, estabelece que, nas operações por conta e ordem, o importador é o contribuinte e o adquirente é o responsável tributário (artigo 14, I). Por tal dispositivo, portanto, nos parece clara a tentativa de tributar, no comércio exterior, a importação e não o negócio jurídico a ela subjacente, em total desarmonia com o artigo 1 do mesmo texto.
Estabelecidas essas premissas, a única forma de “salvar” o texto-base (naquilo que se refere à incidência do IBS sobre importações, obviamente) seria corrigindo essa distorção na base de cálculo. Isso porque, caso a base de cálculo, em uma operação não onerosa, fosse zero, o problema estaria resolvido, do ponto de vista prático (embora continue existindo do ponto de vista teórico).
Ocorre que, avançando na leitura do texto-base, chegamos ao §3º do artigo 16, que me permito transcrever na íntegra:
“§3º No caso de negócios jurídicos ou importações não representados em dinheiro ou entre partes relacionadas, a base de cálculo deverá corresponder ao valor de mercado dos bens ou serviços.”
Muito embora se pudesse entender que importações não representadas em dinheiro são aquelas em que há negócio jurídico oneroso, mas só não há transferência de dinheiro – como, por exemplo, no caso de permuta, integralização de capital etc., quer nos parecer, diante de tudo que foi trazido anteriormente, que a tentativa aqui é, realmente, tributar todas as operações sem cobertura cambial, com base no valor de mercado dos bens importados.
Para se entender o que isso significa na prática, tomemos como exemplo o caso de um contrato internacional de arrendamento operacional de equipamento: se uma empresa brasileira figura nesse contrato como arrendatária, acabaria se vendo obrigada a recolher o IBS tanto sobre o valor das contraprestações pagas ao exterior quanto sobre o valor de mercado do equipamento importado.
Aqui vale destacar que nem mesmo o PIS e a Cofins, tributos absolutamente criticados, cometem o equívoco de tributar tanto o bem quanto a contraprestação do arrendamento, dada a alíquota zero prevista no artigo 8, §14, da Lei 10.865/2004.
Pelo exposto, me parece inegável o equívoco cometido pelo texto-base ao tributar apenas transações onerosas no mercado interno, mas tributar tanto negócios jurídicos onerosos quanto não onerosos na importação.
Tal medida, além de gerar um grande contencioso acerca do tema (tendo como fundamento, especialmente, o artigo 1 do próprio texto-base) pode criar problemas para o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), em razão da ofensa à cláusula do tratamento nacional.
*Fonte: migalhas.com.br
CARLOS EDUARDO DE A. NAVARRO – professor da FGV Direito SP e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT/SP).