ICMS: diferencial de alíquotas a partir das decisões na ADI 5469 e no RE 1.287.019
Em recente decisão proferida no bojo da ADI nº 5469 e do RE nº 1.287.019 (Tema 1093 de Repercussão Geral), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por seis votos a cinco que a instituição, incidência e cobrança do diferencial de alíquota do ICMS (DIFAL) pelos Estados, nas operações interestaduais com bens e serviços realizadas com consumidores finais não contribuintes do ICMS somente poderia ocorrer após o advento de Lei Complementar específica que regulasse a matéria, e declarou como incompatível com o texto constitucional o Convênio ICMS 93/2015, uma vez que teria tratado de matéria reservada à Lei Complementar, nos termos do art. 146, III, “a”, da CRFB/1988.
Foi assentado ainda que para aqueles contribuintes que porventura não possuíam demanda em curso questionando a constitucionalidade do Convênio 93/2015, a referida decisão somente produzirá efeitos a partir do exercício de 2022, em virtude da modulação de seus efeitos, fato que confere tempo razoável para a aprovação da Lei Complementar específica pelo Congresso Nacional e consequente adequação das legislações estaduais aos seus ditames.
O julgamento em questão tem suscitado debates no meio jurídico tributário, dentre os quais sobressaem as seguintes questões: (i) a tendência de o Supremo Tribunal Federal de modular suas decisões em matéria tributária; (ii) a necessidade de autorização do contribuinte de fato (cliente consumidor final) para repetição dos valores pagos indevidamente, em atenção ao disposto no art. 166 do CTN; e, (iii) a extensão do entendimento firmado para a cobrança do DIFAL incidente nas aquisições interestaduais de bens destinados ao ativo imobilizado e uso e consumo por Contribuintes do ICMS.
No que tange à modulação da decisão de forma a salvaguardar retroativamente apenas o direito daqueles contribuintes que optaram por propor ações individuais, tem-se que a sua adoção em sucessivos julgamentos tributários se traduz em um fator que acaba por induzir a cultura do litígio e o ajuizamento de ações tributárias ativas, sobrecarregando o Judiciário, de modo que quem não opta por litigar, confiando nos mecanismos existentes para formação de precedentes, poderá acabar penalizado por sua prudência, num verdadeiro resgate indevido em pleno século XXI da já ultrapassada expressão: “o direito não socorre aqueles que dormem”.
Além disso, a modulação dos efeitos da decisão proferida na fixação de tese de repercussão geral, cuja “relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” é requisito de sua admissibilidade, resulta numa clara interferência na iniciativa privada, que certamente provocará o desequilíbrio concorrencial entre empresas que atuam num mesmo setor da economia, pelo fato de uma ter ajuizado a medida judicial e outra ter aguardado o pronunciamento da Corte Constitucional. Ao fim e ao cabo, a mesma modulação que visa proteger as combalidas finanças públicas, também interfere na alocação eficiente de recursos na economia com prejuízos para o ambiente concorrencial.
Um segundo aspecto importante e afeito ao tema decidido, diz respeito à hipótese de o contribuinte “ganhar, mas não levar”, caso não se adotem as cautelas necessárias a fim de atender os requisitos do art. 166 do CTN para viabilizar a repetição dos valores pagos indevidamente. Há casos, inclusive, em que a realidade de sua operação poderá tornar difícil ou até mesmo não permitir o cumprimento desses requisitos, o que merece atenção para futura liquidação dos casos em curso.
Com efeito, a parcela do ICMS-DIFAL incidente nas operações de venda interestaduais a não contribuintes possui natureza indireta e seu ônus é, via de regra, repassado pelo contribuinte de direito para o contribuinte de fato (consumidor final), o que impõe ao legitimado ativo (contribuinte de direito) no intuito de reaver o eventual indébito a necessidade comprovar de ter assumido integramente o ônus tributário da operação ou caso o tenha transferido, seja autorizado pelo contribuinte de fato a assim proceder.
Não há dúvidas de que a execução dos julgados acerca da matéria tende a inaugurar uma nova etapa de contencioso que terá por objeto exatamente este ponto, qual seja, a demonstração da assunção do ônus tributário pelo contribuinte de direito do DIFAL nas vendas interestaduais para não contribuintes (contribuintes de fato) ou na sua ausência a autorização desses para que possam pleitear o indébito, o que nesse último caso, sem dúvida alguma implicará ainda na possibilidade de renegociação comercial das condições e preços já praticados no passado e que foram impactados pela inconstitucionalidade da cobrança e repasse do DIFAL.
Finalmente, nos parece que a decisão proferida pelo Plenário da Corte Constitucional lança novas luzes sobre uma tese discutida há mais de 20 anos que é exatamente a da necessidade de Lei Complementar para exigência do DIFAL incidente nas aquisições interestaduais de bens destinados ao ativo imobilizado e ao uso e consumo por contribuintes do ICMS, o que impõe a retomada deste histórico.
Com efeito, a destinação da arrecadação nas operações interestaduais é tema nuclear do pacto federativo.
De acordo com a redação original da Constituição, as operações interestaduais destinadas a consumidor contribuinte do ICMS tinham sua arrecadação repartida, enquanto nas operações destinadas a não contribuintes a arrecadação era integralmente alocada ao Estado de Origem.
Como exceção, o Constituinte originário realizou a opção pela regra do destino (local de consumo) com relação à tributação do petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e da energia elétrica (Art. 155, § 2.º, X, “b”). Não por outra razão, a Lei Complementar n.º 87/1996 disciplinou, em seu art. 2.º, § 1º, III, essa hipótese de incidência na “entrada, no território do Estado destinatário”.
Com relação ao ICMS-DIFAL, valendo-se do disposto no art. 34, § 8.º, do ADCT, o antigo e já revogado Convênio ICMS n.º 66/1988, que teve por alguns anos status de Lei Complementar face ao princípio da recepção, regulava o diferencial de alíquota ao dispor em seu art. 2.º que ocorre o fato gerador “na entrada no estabelecimento de contribuinte de mercadoria oriunda de outro Estado, destinada a consumo ou a ativo fixo” e, no art. 5.º, tratava de sua base de cálculo.
Todavia, a Lei Complementar n.º 87/1996, que sucedeu o referido Convênio, não dispôs sobre esta hipótese de incidência. Nesse ponto, a tese de inexigibilidade do ICMS-DIFAL sob o pálio da Lei Complementar n.º 87/1996 não é nova, e não surgiu apenas em razão do advento da EC n. º 87/2015, tendo a doutrina majoritária se posicionado à época no sentido de que a ausência de normas gerais (lei complementar) obstaria a possibilidade de instituição do DIFAL pelas legislações estaduais, fato que nunca foi observado pelos Estados.
Com a promulgação da EC n. º 87/2015, a regra de destinação da receita do ICMS nas operações interestaduais realizadas com não contribuintes e que anteriormente ocorriam de forma integral para o Estado de origem mediante aplicação da sua alíquota interna, foi alterada visando uma melhor distribuição e repartição entre os Estados de origem (produtor/comercializador) e de destino (consumidor).
Assim, a partir da nova redação conferida ao art. 155, inciso II, § 2.º, inciso VII da Constituição da República Federativa, todas as operações interestaduais passaram a ser tributadas pela alíquota interestadual fixada nos termos das Resoluções do Senado e, nas operações destinadas a não contribuintes, deveria o remetente recolher em favor do Estado do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interestadual e a sua própria alíquota interna.
De observar que à luz do art. 155, inciso II, § 2.º, inciso VIII, da CRFB a previsão do recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII, é atribuída ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto, ou, ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto.
Este breve histórico normativo pode induzir, ressalvando quem pense em sentindo contrário, que hoje a matriz normativa do DIFAL pode ser considerada una, uma vez que ambas as hipóteses se escoram no mesmo dispositivo constitucional.
Nesse ponto, prevaleceu no julgamento do Tema 1093, a corrente majoritária que fixou a seguintes tese: “A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional n.º 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais”. Por seu turno, os Ministros vencidos vislumbravam a desnecessidade de edição de Lei Complementar prevista nos termos do art. 146, III, “a”, da CRFB/1988, quando a norma constitucional disciplinar exaustivamente os elementos da relação obrigacional tributária.
Ora, era justamente o argumento da autoaplicabilidade da norma constitucional que historicamente sustentava a constitucionalidade da exigência do ICMS DIFAL nas aquisições interestaduais realizadas por Contribuintes, apesar da omissão da Lei Kandir.
O ponto relevante é que, em nossa opinião, a ratio decidendi deste julgamento se aplica ao DIFAL incidente sobre as aquisições interestaduais de bens destinados ao ativo imobilizado e ao uso e consumos promovidas pelos Contribuintes do imposto estadual, hipótese de incidência que manifestamente carece de escoro em Lei Complementar.
Portanto, assentada a inconstitucionalidade da exigência do ICMS-DIFAL por ausência de Lei Complementar nas operações interestaduais com não contribuintes do ICMS, abre-se a oportunidade para o questionamento prospectivo, assim como para a repetição dos valores indevidamente recolhidos nas aquisições interestaduais destinadas ao uso e consumo e não creditado e ao ativo imobilizado, cujo crédito é regulado de forma específica no art. 20, §5.º da Lei Complementar n.º 87/1996 (48 parcelas, com estorno proporcional mensal em razão das operações isentas e não tributadas), com a avaliação dos impactos práticos à luz da realidade da operação de cada contribuinte.
*Fonte: jota.info
DANIEL DIX – Diretor da ABDF e Professor.
OTTO SOBRAL – Advogado e Professor.